Com alta nos preços de alimentos e queda do poder aquisitivo nos centros urbanos, a venda de restos de pescado a preço baixo causou mal estar pela internet.
As fotos que o servidor público Jailton Pereira, de 31 anos, publicou nas redes sociais chamaram a atenção mostrando carcaças de peixe vendidas a R$3,90 o quilo em supermercado de Belém. Entre milhares de comentários, muitos afirmavam nunca ter visto o produto sendo oferecido em grandes redes, outros defendem que é costumeiro.
A reclamação vem a partir da escalada da fome no país, segundo especialistas, com aumento do preço de alimentos e dos custos de produção, elevados pelas altas na energia elétrica e nos combustíveis. Até mesmo o peixe, item básico na mesa de paraenses, passa pela crise econômica acentuada pela pandemia de Covid-19.
Nesta sexta (8), fiscais do Procon Pará e do Ministério Público do Pará (MPPA) foram ao estabelecimento e não constataram irregularidades, segundo os órgãos. Também não houve denúncias registradas junto ao Procon.
Em nota, os Supermercados Formosa esclarecem que “as carcaças de peixe comercializadas em seus supermercados são produtos vendidos desde a implantação da venda de pescado na rede, para preparo de caldos variados” e que as “postagens do produto em redes sociais possuem informações equivocadas sobre o assunto”.
Repercussão
Jailton conta que fez a foto no sábado (2), no horário do almoço, em uma ida ao supermercado Formosa da avenida Duque de Caxias, em Belém, para acompanhar a mãe nas compras. “Não tinha visto isso antes, até então para mim carcaça de peixe era algo que se jogava fora, não para consumo humano, algumas pessoas me questionaram se isso não servia para donos de gatos, ainda assim, não era algo que eu esperava encontrar em um grande supermercado”.
“A reação foi de surpresa, pois para mim era algo descartável. Me lembra muito as feiras populares, quando no final das vendas, eu via ossos de animais, peles e carcaças de peixe em lugares de descarte, como lixo. Então foi um choque considerar que isso poderia ser consumido”, conta.
O servidor diz que tem sentido no bolso a alta de preços dos alimentos, principalmente em com a carne vermelha. “Tive que reduzir muita coisa das compras mensais e substituir alguns produtos”, ele afirma.
Entre os relatos de consumo que escuta, Jailton comenta que “as pessoas estão passando a ficar mais limitadas em opções de alimentação”. “Já vi gente reclamando do preço da carne moída, que geralmente é uma opção mais barata de consumo”.
Fiscalização
O Procon Pará, que é vinculado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, disse que ainda não recebeu denúncias quanto à comercialização de carcaças de peixes em supermercados de Belém, e que não há regulamentação sobre a venda do produto, portanto, a venda não é ilegal.
Segundo o órgão, a Lei nº 11.346/16 disciplina a atuação do Poder Público com participação da sociedade civil organizada, além de desenvolver e implementar planos, programas e ações com o intuito de assegurar o direito à alimentação.Caso o consumidor queira fazer denúncias, é disponibilizado o número 151, ou indo diretamente ao Procon Pará, na travessa Lomas Valentinas, nº1150, no bairro da Pedreira.
Em nota divulgada nesta sexta, o Procon diz ainda que os fiscais averiguaram preços, notas fiscais dos produtos e questões sanitárias, no setor de venda de peixes congelados e in natura. As equipes também entraram no frigorífico de armazenamento do pescado.
Rodrigo Moura, coordenador de fiscalização afirmou que “os produtos estão em consonância com a legislação vigente”.
Segundo Moura, “foram verificados que todos os peixes que têm procedência por meio da nota fiscal e registro nos órgãos de inspeção sanitária, e não detectamos a venda de espinhaço”, afirma.
A fiscalização foi acompanhada pelo gerente geral do supermercado, Mávio Melo. Ele alegou que o produto não é composto por carcaça de peixe. “O que nós vendemos são aparas, como as ventrechas, o rabo e a cabeça. Produtos que todos os dias têm uma grande saída dentro das lojas”, afirma.
Alimentação mais cara
Segundo estimativas do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o Pará acompanha a realidade do restante do país, que sofre as consequências da crise econômica provocada pela pandemia de Covid-19.
Esse cenário afeta significativamente o poder de consumo e o preço da cesta básica da população. De acordo com o Dieese, 60% do que chega no Pará vem de outros estados, pois a produção local não supre a demanda interna.
Com isso, o mercado paraense fica sujeito a fretes, distâncias gigantescas e altas dos combustíveis. Esses e outros fatores influenciam diretamente no preço dos produtos, que chegam aos supermercados e mercadinhos locais muito mais caros que o normal.
“São cenários muito ruins. Uma combinação de inflação, pandemia, fome, perda do poder aquisitivo, falta de clareza nas políticas econômicas. Esses são os principais motores dessa situação dramática. Todo dia a gente lida com aumentos, dos combustíveis, na alimentação. A gente não tem uma leitura até o final do ano de mudanças nesse cenário”, explica Everson Costa, técnico do Dieese.
Ainda segundo o Dieese, 52% da renda da população é para alimentação e em um cenário de 14 milhões de desempregados no país, muitos sobrevivem de doações e buscam complementar a alimentação com produtos impróprios para o consumo, o que coloca em risco a segurança alimentar dessas famílias.
Outros ficam sem alternativa, como é o caso da Benedita Castro, que ganha um salário mínimo e precisa sustentar a família praticamente sozinha. O esposo está desempregado há cinco meses e o casal ainda tem gastos com o tratamento de saúde do filho de 8 anos, que sofre de psoríase, uma doença autoimune.
Dona Benedita conta que o salário mal dá pra pagar as contas, comprar remédio e suprir outros gastos da casa. A cesta básica já não conta com carne há muito tempo, as refeições são apenas com arroz , feijão e, quando dá, ovo ou salsicha.
Ela afirma que já viu carcaça de peixe sendo vendida nos supermercados de Belém, mas disse não ser uma opção viável pra família, mesmo diante das dificuldades.
“Tenho criança e preciso optar por uma coisa que dê pra todo mundo comer. Não posso dar uma carcaça de peixe pra uma criança. Prefiro dar um ovo, se não tiver dinheiro pra comprar outra coisa, prefiro dar um ovo pra ele”, declara Benedita.
Cerca de 40% dos paraenses, assim como dona Benedita, sobrevivem com até um salário mínimo, aponta o Dieese. Sendo assim, sobra pouco para gastos com habitação, água, luz, transporte, medicamentos. É uma competição desproporcional diante da persistente alta do preço da cesta básica.
“É praticamente impossível garantir alimentação regular, saudável e com as tabelas nutricionais que se requerem para a família. É uma preocupação gigantesca que se espelha em políticas de proteção social”, afirma Everson Costa, do Dieese.