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quinta-feira, 21/11/2024
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Censo conturbado põe dados em risco

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A resistência das pessoas é um obstáculo, mas fica mais restrita às famílias mais ricas, contingente relativamente pequeno em relação ao total da população

(Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Sentado na sauna de um condomínio em Higienópolis, bairro nobre do centro de São Paulo, o recenseador Wesley Mendonça, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), passou 4 horas interfonando para todos os apartamentos para convocar os moradores a responder ao questionário do Censo Demográfico de 2022. O local escolhido para o trabalho pode parecer estranho, mas o processo foi produtivo, segundo ele. Mendonça aproveitou o entra e sai do local para coletar as informações de que precisava, enquanto os moradores “relaxavam”.

O resultado, porém, tem sido exceção. Até a quinta-feira passada quando o Estadão acompanhou o trabalho de Mendonça, apenas um terço dos apartamentos havia respondido ao questionário. Ao todo, os recenseadores podem ir cinco vezes a um mesmo endereço, em horários diferentes, para tentar levantar as informações.

“Existe uma certa desconfiança sobre qualquer coisa que o poder público faz, mas há também uma falta de conhecimento”, disse o recenseador de 24 anos, ressaltando que os questionamentos podem ser feitos em cerca de 1 minuto.

Só que não era para Mendonça estar ali nesta época do ano. O trabalho de campo do Censo, que já se arrasta por quase seis meses, deveria ter sido feito entre 1º de agosto e o fim de outubro passado. Mesmo depois desse tempo todo, ainda falta a cobertura de 13,5% dos “setores censitários”, divisão operacional do território para organizar as visitas domiciliares. Até agora, o IBGE contou 184,3 milhões de brasileiros, enquanto uma estimativa feita com base em uma prévia do Censo 2022 apontou para uma população total de 207,8 milhões.

Dificuldades do Censo

A resistência das pessoas é um obstáculo, mas fica mais restrita às famílias mais ricas, contingente relativamente pequeno em relação ao total da população. Desde que começou a informar sobre a prorrogação do trabalho de campo, o IBGE apontou a dificuldade em contratar recenseadores — que, como em todos os Censos, são temporários — como principal entrave.

A diretoria do IBGE tem culpado o aquecimento do mercado de trabalho, que surpreendeu ao gerar mais empregos ao longo do ano passado do que o inicialmente esperado, pela dificuldade em recrutar recenseadores.

Desde o início do trabalho de campo, reclamações sobre a remuneração baixa e a demora no pagamento fizeram muitos dos profissionais recrutados abandonarem o serviço, além da ameaça de uma greve. O IBGE tem dito que correu para ajustar valores, mas foi insuficiente. Eduardo Rios Neto, presidente do IBGE em 2021 e 2022, lembrou que, como nunca antes, as redes sociais espalharam a insatisfação dos recenseadores, afastando interessados.

Mesmo que o baixo valor da remuneração não tenha sido determinante para afastar os recenseadores, a crônica de cortes no orçamento do Censo é longa. Os técnicos do IBGE orçaram inicialmente a operação censitária em R$ 3,1 bilhões para que ocorresse em 2020. No contexto da transição para o governo Bolsonaro, a verba acabou cortada para R$ 2,3 bilhões, e os questionários foram enxugados. O sindicato dos servidores, o Assibge, avalia que o orçamento inicialmente proposto precisaria ser corrigido pela inflação para R$ 3,7 bilhões.

Os atrasos poderão prejudicar a qualidade dos dados, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão/Broadcast. “Você tem de fazer a coleta concentrada em dois meses, mais um mês para o rescaldo. Quanto mais longe da data-base, mais fracas são as informações. Se somar isso a uma rede de recenseadores enfraquecida, com treinamento limitado, as chances de você ter uma base de dados ruim é muito grande. É muito preocupante fazer uma coleta em dezembro e janeiro para uma informação referenciada em julho”, explicou Roberto Olinto, outro ex-presidente do IBGE, hoje pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), acrescentando que a pesquisa só está em campo graças ao esforço e à capacidade do corpo técnico.

Ano eleitoral atrapalhou o Censo?

Outro problema, apontado pelo pesquisador José Eustáquio Diniz Alves, professor aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), ligada ao IBGE, foi que o adiamento empurrou o Censo para um conturbado ano eleitoral. “Eu achava que a polarização política iria prejudicar o trabalho dos recenseadores, como de fato ocorreu”, afirmou Diniz Alves.

O recenseador Wesley Mendonça viu maior influência da polarização política durante o período de campanha eleitoral. “No começo de setembro, fui fazer a coleta em um prédio onde moradores de uns dois ou três apartamentos falaram que era a ‘pesquisa do Lula’. Eu disse que não, e expliquei exatamente aquilo que nos ensinam no treinamento”, contou.

Além de ameaçar a qualidade dos dados, os sucessivos atrasos atrapalham a produção de informações socioeconômicas, prejudicando de pesquisas eleitorais às estatísticas conjunturais sobre mercado de trabalho, da alocação correta de quantidade de doses de vacinas para cada ponto do País à divisão de recursos públicos federais repassados a Estados e municípios, por meio dos fundos de participação.

Sem o Censo 2022, as estatísticas nacionais ficam numa espécie de “vácuo”, disse Diniz Alves, lembrando que problemas orçamentários já haviam levado o IBGE a cancelar a Contagem Populacional de 2015. Isso aumenta a defasagem em relação ao Censo 2010. “O Brasil mudou muito em termos educacionais, demográficos, de renda, de mercado de trabalho, de filiação religiosa etc. Só o Censo Demográfico é capaz de traçar uma ‘radiografia’ da realidade nacional”, disse o professor da Ence.

Para o recenseador Mendonça, toda a polêmica envolvendo a possibilidade de não conclusão do Censo afeta a imagem do levantamento, inclusive entre os próprios recenseadores. Ele contou que conseguiu convencer colegas desanimados com o andamento do Censo a não desistir de trabalhar no projeto. “Quero que daqui a oito anos, quando a gente for começar o Censo de 2030, que eu, de alguma forma, consiga contribuir para que os trabalhadores possam ter melhores condições.”

TRÊS PREGUNTAS PARA Simon Schwartzman, presidente do IBGE na primeira gestão Fernando Henrique Cardoso

Os problemas já estavam anunciados quando, em 2019, se cortou o orçamento do Censo 2020?

Claramente. O governo Bolsonaro não deu a menor prioridade para o Censo. Sempre houve dificuldades (orçamentárias) com o IBGE, não foi só no governo Bolsonaro. De qualquer maneira, o Censo 2010 foi feito. Em relação a 2020, claramente, não havia como fazer. Isso apareceu em várias ocasiões e culminou com a decisão do Congresso de cortar o dinheiro (em 2021). Houve uma má vontade do governo, e o Congresso, no fim, acabou cortando, com o beneplácito do governo.

Era preciso investir mais?

A verdade é que, hoje em dia, a tendência é cada vez mais se evitar esses grandes levantamentos. Os países mais desenvolvidos hoje em dia, tendem a trabalhar com dados agregados, com registros de nascimentos, morte e civis. Tentam evitar grandes levantamentos de campo. O ideal é, na verdade, não fazer o censo. Chegar a um ponto, como chegaram vários países europeus, em que se tem o registro administrativo de toda a população. Aí não precisa do censo.

Dá para garantir a qualidade dos dados após tantos atrasos?

Não sou demógrafo, mas acompanhei um momento na Colômbia, num censo em 2010, quando eles tiveram um problema muito grave. Participei de um grupo de pessoas de fora para avaliar a situação de lá. No caso da Colômbia, o que a gente viu é que se pode sempre fazer uma estimativa, tem muita informação, sempre podemos trabalhar com margens de erro, fazer estudos complementares. Pode-se usar os dados de registro para calibrar a informação. Não dá para apagar este censo e fazer outro. É uma coisa caríssima. Sempre podemos melhorar e complementar a informação. Neste momento, temos de ver o que dá para resgatar [das informações] para chegar aos melhores dados possíveis. E avançar no sentido de poder dispensar essas grandes operações de campo, usando melhor os recursos da internet para que não tenha de fazer de novo um Censo em 2030.

Para o demógrafo Eduardo Rios Neto, que comandou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na maior parte da operação censitária, embora o orçamento do Censo Demográfico 2022 tenha sido o possível diante da “economia política” do momento, não foi só a falta de recursos a vilã por trás dos atrasos na principal pesquisa populacional do País.

Segundo ele, o principal gargalo, a escassez de trabalhadores dispostos a assumir as vagas temporárias de recenseador, ocorreu em razão do aquecimento do mercado de trabalho, ao excesso de trabalho e a reverberação, nas redes sociais, de problemas que ocorreram no início do trabalho de campo, em agosto. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O ex-ministro Paulo Guedes começou o governo pedindo um Censo mais enxuto para economizar recursos. Isso atrapalhou?

Quando houve a questão [da redução] das perguntas, a narrativa era de que o corte no questionário era para economizar. Eu sempre neguei isso. Sempre advoguei que o ponto era a cobertura, que é o problema que estamos tendo hoje. A saturação com a extensão do tempo. O problema continua sendo a cobertura. Um questionário mais ágil poderia ajudar nisso. O enxugamento mais importante foi no questionário básico. O questionário está supereficiente, ao ponto de que tem gente que acha que está rápido demais. A função precípua do Censo é contar a população com uma boa cobertura. O questionário básico cumpriu sua função.

O orçamento foi suficiente?

O orçamento baixou para um patamar próximo de R$ 2 bilhões. Depois do corte [do orçamento] em 2021, houve a decisão do Supremo [Tribunal Federal]. Este é o único Censo que está sendo realizado sob uma decisão judicial, por uma liminar. E na liminar foi feita uma proposição de que o IBGE determinasse quanto seria necessário para realizar o Censo. Fizemos um projeto rigoroso propondo R$ 2,3 bilhões. À época, o Ministério da Economia tentou reduzir para R$ 2 bilhões, e fomos rigorosos, dizendo que tinha de ser R$ 2,3 bilhões. Então, não é que foi na bacia das almas. Talvez pudesse ter tido uma gordura maior? Talvez pudesse, mas tem a economia política do momento. Agora, não antecipávamos uma inflação tão grande como houve em combustíveis. O projeto não tinha contemplado isso. E, dada a crise generalizada desde a pandemia, não esperávamos um mercado de trabalho tão aquecido quanto foi no ano passado. Fomos surpreendidos por isso. A remuneração que estava no projeto que determinou o valor que pedimos ficou aquém do que seria o mais efetivo para o momento do mercado de trabalho no segundo semestre do ano passado, mas, mesmo isso, há uma flexibilidade. No fim, fomos adaptando e fomos aumentando [a remuneração dos recenseadores]. É importante dizer que houve problema de atratividade, mas o dinheiro não acabou. Quase R$ 500 milhões foram transferidos em restos a pagar para este ano.

Dá para garantir a qualidade do Censo 2022?

O Censo está atrasado, mas é de qualidade. Se tem alguma tragédia nesse Censo é a tragédia da deslealdade e do oportunismo. O IBGE teve um norte, que nunca foi ideológico, sempre com a missão de retratar a realidade. Fizemos, inclusive, um ‘dashboard’ que acompanha a operação do Censo diariamente e compara com os censos de 2010 e de 2000. Quando detectamos problemas, corrigimos a tempo. Recebemos 20 países observadores em setembro. Chamei a autoridade estatística do Reino Unido para vir aqui. O problema da qualidade é a transparência e a correção. Existe ciência para isso. Temos controle sobre tudo. O ótimo é inimigo do bom, mas estou muito tranquilo.

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