Por mais que o primeiro caso tenha sido detectado no Brasil no dia 26 de fevereiro de 2020, hoje sabe-se que o coronavírus já circulava por aqui muito antes disso
O infectologista Fernando Gatti estava descansando em casa quando seu celular tocou por volta das 20h do dia 24 de fevereiro de 2020, uma Segunda-Feira de Carnaval.
Do outro lado da linha, um médico que trabalhava no plantão do pronto-socorro do Hospital Israelita Albert Einsten, na zona sul de São Paulo, tinha uma pergunta importante: ele deveria ou não pedir um teste de covid-19 para um paciente que apresentava sintomas de gripe e tinha acabado de voltar de uma viagem à Itália?
Gatti, que é coordenador médico do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Einstein, não teve dúvidas, e orientou seu colega a realizar o exame.
Em poucas horas, já no dia 25, o laudo deu a notícia que todo o Brasil sabia que viria, mais cedo ou mais tarde: o primeiro caso de covid-19 havia sido oficialmente detectado no país.
Mas antes de entrar nos detalhes desta história, é preciso retroceder algumas semanas para entender qual era o clima e o contexto no Brasil e no mundo.
Casa arrumada para o caos
As primeiras notícias sobre uma “pneumonia misteriosa” que estava afetando algumas partes da China começaram a surgir na mídia internacional no final de dezembro de 2019.
A informação de que a doença era causada por um novo tipo de coronavírus foi transmitida por cientistas chineses e divulgada a partir do dia 8 de janeiro de 2020.
Rapidamente, a cidade de Wuhan, capital da província de Hubei, foi identificada como epicentro da crise sanitária e teve seus aeroportos, portos, ferrovias e rodovias bloqueadas, numa tentativa de conter a disseminação do agente infeccioso.
Mas já era tarde demais: logo apareceram casos em outras partes da China e o agente infeccioso foi identificado em países próximos, como Japão e Tailândia.
Os episódios de covid-19 se espalharam rapidamente para outros continentes e foram detectados na Europa e na América do Norte.
Portanto, havia a certeza quase absoluta que o vírus chegaria em algum momento ao Brasil ainda no primeiro trimestre de 2020.
“E nós sabemos que o público que utiliza os serviços do Einstein e de outros hospitais particulares costuma fazer muitas viagens internacionais, então já imaginávamos que o primeiro caso poderia ser diagnosticado aqui”, aponta Gatti.
Foi justamente pensando nessa possibilidade que o infectologista liderou uma verdadeira força-tarefa para organizar a instituição para o que viria pela frente.
“Desde o início de janeiro de 2020 nós fizemos treinamentos para deixar toda a equipe preparada e reforçamos os estoques de equipamentos de proteção, como as máscaras, os aventais, as luvas, os óculos e o face shield”, lembra.
Segundo Gatti, outra decisão importante foi a de ampliar a suspeita de covid-19 para todos aqueles que tivessem feito viagens internacionais e apresentassem sinais sugestivos de uma infecção respiratória.
“Naquele momento, a Organização Mundial da Saúde só preconizava a realização de exames para aqueles indivíduos com sintomas que tinham retornado da Ásia”, diz.
A orientação para todos os médicos que faziam plantões no Einstein era uma só: ligar para o Serviço de Controle de Infecção Hospitalar caso tivessem qualquer dúvida sobre a necessidade de fazer o teste para detectar o novo coronavírus nos pacientes que ingressavam pelo pronto-socorro da instituição.
O primeiro de 10 milhões
E esse protocolo foi seguido à risca naquela noite de 24 de fevereiro.
Poucas horas depois, já na madrugada do dia 25/02, Gatti recebeu uma nova ligação em seu telefone: o Laboratório de Biologia Molecular do Einstein havia concluído a análise da amostra de material colhida do paciente e tinha encontrado o novo coronavírus ali.
Entre janeiro e fevereiro, os cientistas da instituição haviam examinado cerca de 20 a 30 casos suspeitos por semana, mas todos voltavam com resultados negativos.
A virologista Rúbia Anita Santana, coordenadora do Setor de Biologia Molecular do Einstein, se recorda da dificuldade em encontrar materiais e insumos num momento em que as informações sobre o novo coronavírus estavam absolutamente desencontradas.
“Não existia no mercado nenhum kit de detecção pronto. Nós tivemos que desenvolver um novo produto do zero, para estarmos preparados quando a doença chegasse no Brasil”, conta.
Santana mal sabia que, passados alguns meses dessas primeiras experiências, ela e sua equipe precisariam fazer até 80 mil testes de covid-19 ao mês. “Reestruturamos completamente nosso espaço e nosso fluxo de trabalho. Foi muito desafiador”, destaca.
Ao receber a informação do laudo positivo, Santana, Gatti e a equipe do laboratório repetiram o exame novamente, para ter certeza de que não havia acontecido algum percalço no procedimento ou algum problema nos equipamentos do laboratório.
“Esse segundo teste foi processado durante a madrugada e, na manhã do dia 25, eu já estava no hospital quando ficamos sabendo que o resultado era mesmo positivo”, diz o infectologista.
Após a confirmação, o imunologista Luiz Vicente Rizzo, diretor do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, ficou responsável por levar a notícia ao alto comando do hospital.
“O protocolo já estava pronto e, quando o resultado saiu, as lideranças foram notificadas para seguir com o plano de divulgação”, descreve.
Antes de comunicar a imprensa e a sociedade, porém, as amostras do paciente foram enviadas para o Instituto Adolfo Lutz, que é o laboratório referência para a análise de doenças infecciosas no Estado de São Paulo.
Uma terceira rodada de testes, que se alongou pela tarde e pela noite da terça-feira (25/02), confirmou mais uma vez que se tratava mesmo do primeiro caso de covid-19 no Brasil.
O anúncio oficial foi feito no dia seguinte, na manhã da quarta-feira de cinzas, 26 de fevereiro, por Luiz Henrique Mandetta, o então ministro da Saúde.
“Agora, com o primeiro caso confirmado no Brasil, vamos ver como o vírus vai se comportar em um país tropical em pleno verão. É um vírus novo, que pode ou não manter o mesmo padrão de comportamento de transmissão que tem no hemisfério norte, com o frio”, discursou Mandetta naquele dia.
No mesmo evento, o então ministro da Saúde também descartou a possibilidade de fechar as fronteiras ou fazer testagem em aeroportos. “[Isso] não tem eficácia nenhuma, porque os pacientes podem ter o vírus sem apresentar sintomas. Essa é mais uma doença que a humanidade vai ter que enfrentar.”
Vale dizer, no entanto, que o caso identificado no Einstein, como descrito acima, foi o primeiro detectado de forma oficial.
Estudos posteriores divulgados a partir de maio de 2020 mostraram que o vírus já circulava pelo país muito antes dessa data — e se aproveitou das aglomerações e da falta de medidas de restrição para criar cadeias de transmissão Brasil adentro.
Evoluções e recaídas
À época, o primeiro diagnosticado com covid-19 no Brasil estava com 61 anos, morava em São Paulo e havia retornado de uma viagem pela Itália, onde permanecera entre os dias 9 e 21 de fevereiro.
A situação da Itália, mais especificamente na região da Lombardia, foi bastante dramática nos primeiros meses da pandemia. Cenas de caminhões militares transportando caixões pelas ruas da comuna de Bergamo foram um dos símbolos mais fortes da crise de saúde pública que abateu a Europa naquele momento.
Com incômodos como tosse, febre, dor de garganta e coriza, o paciente foi avaliado pelos médicos do Einstein e, como não apresentava sinais de complicação, acabou liberado para seguir o tratamento em casa, com orientações de quarentena bastante restritas.
Seu estado clínico era checado várias vezes ao dia por meio de conversas telefônicas e mensagens de WhatsApp.
“Uma semana depois, ele precisou ser internado porque a febre persistia. Durante a hospitalização, nós encontramos uma pneumonia bacteriana, que costuma ser um quadro associado a covid-19 em cerca de um terço dos casos”, estima Gatti.
Após o tratamento adequado, a infecção nos pulmões acabou controlada e logo a alta hospitalar foi dada.
Gatti lembra que o paciente se mostrou bastante incomodado com a cobertura jornalística de sua condição de saúde. Ele sentia que as reportagens o apontavam como culpado por trazer a covid-19 ao Brasil — e hoje em dia não há dúvidas que o coronavírus já circulava por aqui antes de 26/02 e teve múltiplas entradas no país, com vários passageiros que retornaram já infectados de viagens internacionais.
O outro lado do consultório
Mas as complicações após o primeiro diagnóstico não se limitaram ao paciente. O médico também acabou sentindo abalos na própria saúde.
“Em março, eu tive um episódio de burnout e precisei tirar uma licença do trabalho durante dez dias”, revela Gatti.
Burnout é uma enfermidade psiquiátrica marcada pelo completo esgotamento físico e emocional que impede a pessoa de trabalhar ou fazer qualquer atividade.
O infectologista diz que parte de sua condição se deveu à frustração de lidar com uma doença nova, em que não havia conhecimento suficiente para oferecer o melhor tratamento a quem precisa de ajuda.
“Nós perdemos muitas vidas e é muito difícil comunicar a família. Depois de cada dia, sempre ficava pensando o que podia ter feito de diferente, de melhor, e não encontrava respostas”, comenta.
A crise só foi superada graças ao apoio psiquiátrico. “Nós precisamos falar mais sobre o esgotamento e a sobrecarga de trabalho que afetam todos os profissionais de saúde que estão na linha de frente da pandemia”, alerta Gatti.
Um ano depois, as lições
Passados 12 meses do primeiro diagnóstico oficial, o Brasil contabiliza mais de 10,2 milhões de casos e quase 250 mil mortes pela covid-19.
Até o momento, o Brasil é o país com o segundo número mais alto de óbitos de todo o mundo e o terceiro na quantidade de infectados em números absolutos.
Mas o que será que um ano de pandemia nos deixou de ensinamento? A BBC News Brasil fez essa pergunta para os três profissionais que estiveram envolvidos com o episódio dos dias 24, 25 e 26 de fevereiro de 2020.
Para Rizzo, a covid-19 escancarou a necessidade de investimentos na ciência colaborativa dentro do Brasil e no mundo.
“Enquanto cientistas, precisamos estar mais abertos para trabalhar em conjunto e entender que é impossível viver sem pesquisa. Se nós tivéssemos mantido os estudos sobre o Sars-CoV, o vírus causador da Síndrome Aguda Respiratória Grave (Sars) de 2003, talvez hoje entendêssemos um pouco melhor o coronavírus atual e já tivéssemos tratamentos para ele”, analisa.
O especialista destaca a façanha do desenvolvimento de uma vacina em menos de um ano e do esforço para estudar e conhecer os possíveis efeitos de diversos medicamentos contra a covid-19.
Santana sublinha a necessidade de lidar com o imprevisível e, de certa maneira, estar preparado para isso.
“O coronavírus fez a gente voltar ao jardim de infância da virologia e reaprender muito do que sabíamos sobre doenças infecciosas. Ele tem características únicas, muito diferentes daquilo que já tínhamos visto”, raciocina.
Por fim, Gatti entende que a comunicação e o trabalho em equipe foram decisivos para salvar muitas vidas.
“A pandemia deixou ainda mais nítida a noção de que a saúde não depende só do médico. A equipe multidisciplinar composta de enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, nutricionistas e os demais profissionais é decisiva para a melhora do paciente”, defende o infectologista.
No cenário em que a vacinação contra a covid-19 está disponível e sinaliza que a pandemia acabará (num futuro ainda distante), os exemplos do passado recente nos permitem lembrar o início de um ano que mudou o Brasil e o mundo para sempre.