Essas iniciativas fazem parte do decreto que cria o programa Reencontro, a nova política municipal para a população de rua, que deve ser publicado nos próximos dias
Diante do aumento da população em situação de rua em São Paulo, a prefeitura investe em casas modulares, de 18m², como opção de moradia para os sem-teto. A previsão é entregar 2 mil unidades até o fim deste ano — a primeira vila foi inaugurada em dezembro no Canindé, na zona norte. Outra frente será um auxílio, entre R$ 600 e R$ 1,2 mil, para quem hospedar pessoas em vulnerabilidade social.
Essas iniciativas fazem parte do decreto que cria o programa Reencontro, a nova política municipal para a população de rua, que deve ser publicado nos próximos dias. Com a pandemia e a piora da crise socioeconômica, o total de sem-teto saltou 31% entre 2019 e 2021 — são quase 31 mil sem ter onde morar, segundo o último censo da prefeitura.
A gestão Ricardo Nunes (MDB) destaca a área social como um dos focos do seu mandato, mas no dia a dia os cidadãos veem o problema cada vez mais evidente nas ruas — já não é incomum flagrar famílias em barracas ou sob viadutos. Entre as críticas de especialistas, está a dificuldade do poder público de criar políticas integradas, em larga escala e de longo prazo para resolver o problema.
As casas modulares são diferentes dos abrigos: a ideia é que as pessoas fiquem lá por até dois anos. O programa é inspirado no conceito Housing First, que prioriza a moradia como ponto de partida para outros direitos sociais da população de rua, como educação, saúde e trabalho. Iniciado nos Estados Unidos, o movimento inspira iniciativas na Espanha, Canadá, Japão e França.
A primeira Vila Reencontro, no Canindé, na zona norte, foi erguida no antigo clube da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), perto do Shopping D, ao custo de R$ 2,796 milhões. São 40 unidades para 160 pessoas — todas estão ocupadas.
Casa mobiliada e com número
As casinhas têm banheiros, pias e são mobiliadas com camas, geladeiras, fogões com duas bocas e guarda-roupas. Há vasos de plantas na entrada das unidades. São estruturas metálicas, que lembram contêineres e, mesmo com o sol de rachar de sexta-feira, 13, no dia da visita do Estadão ao local, não fazia calor excessivo no interior dos ambientes.
O foco são famílias com crianças, de até quatro pessoas e que estejam usando as ruas como moradia há menos de dois anos. Quem mora ali tem de respeitar algumas regras, definidas pela Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI), gestora do serviço. É preciso chegar antes das 22h, salvo exceções médicas ou profissionais, e mostrar carteirinha de identificação na portaria.
Por enquanto, eles não podem receber visitas — ponto de lamento para o mecânico Eduardo Severino Silva, de 30 anos, que vive ali há duas semanas com a mulher, Aline Souza, de 34, e as duas filhas — a prefeitura afirma que a restrição é provisória e pode ser revista nas próximas assembleias de moradores. Por outro lado, eles têm Wi-Fi e espaço para as crianças brincarem.
O manobrista Ricardo Augusto Santos, de 43 anos, destaca que as casas têm número, o que significa um endereço para correspondência. “Quando você vive em um abrigo, sem endereço fixo, as empresas não chamam. Esse momento é de renovação para mim”, diz. Antes de viver ali, Ricardo, a mulher Gilmara e as duas filhas estavam no Centro de Acolhimento Temporário do Canindé.
Quem mora ali não pode beber nem usar drogas. Se há uso abusivo, serão atendidas por outros programas, como o Redenção e o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT), diz a prefeitura.
A experiência da administradora na organização dos acampamentos de refugiados e migrantes venezuelanos em Roraima ajudou na criação de coletivos dentro da vila. Um morador de cada casa integra os grupos responsáveis pela horta, limpeza e alimentação. A autogestão é uma novidade para população de rua. No começo, as pessoas estranharam; agora, estão se acostumando. Durante a visita do Estadão, uma das moradoras varria a área de convivência.
Questionado sobre a disparidade entre o número de casas previstas e o tamanho da população de rua — as vagas representam cerca de 25% do total de pessoas sem-teto —, o secretário de Assistência Social, Carlos Bezerra Jr., cita outras iniciativas, como o aumento das vagas nos centros de acolhida e nos hotéis, passando de 1,7 mil para 3,3 mil, e a ocupação de prédios públicos desocupados, como seis construções da Fundação Casa. “Tiramos 50 pessoas das ruas por dia”, diz ele.
Diante do volume de pessoas em vulnerabilidade que chegam à cidade mensalmente — 600, nas contas do Município —, a secretaria quer criar um comitê metropolitano, com municípios da Grande São Paulo, para discutir e implementar políticas públicas para esse público.
Alvos de novo auxílio
Já o auxílio-reencontro funciona como uma ajuda financeira a quem acolher a pessoa em situação de rua. Ele oferece duas faixas diferentes: R$ 600 por pessoa acolhida ou R$ 1,2 mil por família (casal em união estável ou pai/mãe com um ou mais filhos).
Será direcionado a “locação, arrendamento ou hospedagem da pessoa em situação de rua, em unidades habitacionais completas ou parciais ou compartilhadas”, segundo o texto da minuta do decreto da nova política, ao qual a reportagem teve acesso. Na prática, o foco são proprietários de pensões com vagas ociosas; donos de imóveis vazios ou até mesmo pessoas que tenham um cômodo vago em sua casa. O auxílio será oferecido por 24 meses.
Bezerra Jr. diz que essa lei ainda está na fase de regulamentação e detalhamento técnico entre as secretarias envolvidas. Depois, o documento ainda precisa do aval do prefeito, por isso, ainda há questões em aberto. Entre elas, estão a frequência de acompanhamento assistencial dos inquilinos a metodologia e a elegibilidade, o que especialistas veem como um dos principais desafios para uma ideia desse tipo. Entre os pré-requisitos para receber a mensalidade, por exemplo, está a permanência do acolhido longe do álcool e outras drogas.
Privacidade e autonomia
Para o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, seria interessante fazer ajustes no programa. “O projeto propõe autonomia, mas o local tem refeitório e uma administradora. Uma resposta mais adequada seria investir na locação social, que gera mais autonomia que um espaço institucional, com uma tutela”, afirma ele, referência no debate sobre atendimento a pessoas em situação de rua.
Na Vila Reencontro, são servidas quatro refeições diárias. A prefeitura diz que a medida é apenas provisória e que as famílias serão cada vez mais autônomas.
Segundo Robson Mendonça, presidente do Movimento das Pessoas em Situação de Rua, é importante que sejam providenciadas habitações permanentes, mas as casas modulares “garantem individualidade e oferecem melhores condições que os albergues”.