Após mais de 170 dias da operação russa em território ucraniano um redesenho da geopolítica mundial começa a acontecer, enquanto um horizonte de cessar-fogo parece distante. Mas até que ponto o tempo empregado na operação é nocivo para os que a realizam ou para os que enviam armamento a Kiev?
A operação russa na Ucrânia entrou em seu 176º dia nesta quinta-feira (18). Iniciada em 24 de fevereiro, a ação tem como objetivo a desmilitarização e desnazificação do território ucraniano. Até o momento, Moscou continua firme em seu propósito e avança, principalmente na região de Donbass.
No entanto, ultimamente tem sido apontado que a operação acontece em passos lentos. Para Robinson Farinazzo, especialista militar e oficial da reserva da Marinha do Brasil entrevistado pela Sputnik Brasil, o ritmo atende aos objetivos do líder russo, Vladimir Putin, o qual teria “interesse em fazer a operação da forma mais devagar possível”.
“É importante lembrar que o efetivo militar empregado por Moscou nesta operação é mínimo, eles poderiam ‘pesar a mão’ muito mais do que estão fazendo […], o que leva a reforçar essa impressão de que não se tem pressa [para concluir a operação]. Mas não acho, de forma nenhuma, que a maneira como está sendo conduzida a ação indique incompetência militar, estão é usando o tempo ao seu favor”, analisou o especialista.
O comandante também destaca que na história militar russa – passando pelo período de Napoleão até a invasão alemã em 1941 e recentemente a Síria –, a Rússia sempre “soube jogar muito bem com o tempo em suas operações”.
“E para as pessoas que pensam que essa operação na Ucrânia pode ser curta, vale lembrar que a ação na Síria já dura quase oito anos. Portanto, se o Putin quiser estender a ação de agora em território ucraniano ele pode, porque tem efetivo e musculatura militar para isso.”
Outro ponto que poderia prolongar a operação, visto que tornaria a defesa ucraniana mais robusta e consequentemente ofereceria mais resistência à investida russa, é o volume de armamento e apoio que o Ocidente envia para Kiev.
No começo deste mês, os EUA divulgaram o envio de US$ 1 bilhão (R$ 5,11 bilhões) em ajuda militar para Ucrânia, no qual será incluído mais munição para lançadores múltiplos de foguetes Himars, conforme noticiado.
Com mais esse pacote, desde de o começo do conflito em fevereiro, Washington já enviou US$ 9,8 bilhões (R$ 50,9 bilhões) em ajuda militar para Kiev, segundo o site Grid. Isso sem contar com a ajuda enviada por Canadá, Austrália e países da Europa.
Entretanto, na visão do especialista, esse envio pouco alterará o cenário do conflito, uma vez que “essas armas deveriam ter sido enviadas em 2020 para que fizessem a diferença”.
“A Ucrânia já tem um certo tipo de problema com efetivo, mas a questão mesmo é a falta de especialistas, como você vai conseguir um especialista em artilharia, um operador de sistemas de comunicações, um motorista de carro de combate, etc, então essas armas sem o pessoal especializado não vão fazer muita diferença.”
Farinazzo comenta exatamente sobre o sistema de foguetes Himars, lembrando que quando o mesmo chegou ao território ucraniano, as pessoas “ficaram animadas”. No entanto, a animação já diminuiu visto que “por experiência, se sabe que só o armamento não muda o cenário militar”, essas armas apenas empregam um forte “efeito de propaganda”.
No entanto, o comandante acredita que o apoio a Kiev vai continuar, porém, sublinha que fora os EUA, os países que ainda enviam ajuda sofrem “uma pressão norte-americana para seguirem com os envios”.
“A Europa não tem mais nada a ganhar com esses envios [de armamento]. A Alemanha está perdendo e terá uma enorme contração de sua economia por conta disso. Berlim tinha acesso à energia barata e poderia colocar produtos no mercado com em um preço competitivo, mas agora com o aumento e escassez do gás isso não será mais possível. Na prática, o que a Europa está conseguindo, é perder seu mercado para russos e chineses que estão comprando energia mais barata da Rússia”, examina.
Ao mesmo tempo, o comandante contextualiza que, quem paga a conta, é o cidadão europeu comum, que ao receber as taxas de energia em casa, enxerga um valor a ser pago cada vez mais alto.
“Se fizessem um referendo, a sociedade, por estar pagando o preço […] dificilmente vai querer [que seu governo] continue apoiando essa situação que está levando à falência. Mas essas administrações, pressionadas pelos EUA, estão prolongando isso […]. Como grandes ‘players’ norte-americanos da indústria de energia, de defesa, alguns congressistas e algumas ONGs estão ganhando muito dinheiro com isso, a gente não sabe por quanto tempo vai continuar o sofrimento do povo ucraniano”, afirma.
Neste momento, é bastante visível que o conflito entre Rússia e Ucrânia ultrapassa as fronteiras ucranianas e chega, através da crise econômica, a outros países, principalmente às nações europeias.
Indagado de o porquê de lideranças locais não pressionarem Kiev para negociar com Moscou a fim de cessar o conflito e, consequentemente a crise, o comandante diz que a Europa “perdeu a representatividade”, uma vez que os atuais políticos “estão completamente desvinculados do homem médio europeu”, já que são eleitos para “atenderem a uma agenda”.
“Vejamos o caso do [presidente francês] Emmanuel Macron, que é um banqueiro, ele não sabe o valor da passagem de ônibus, quanto custa o quilo do pão, ele foi colocado ali por grandes conglomerados econômicos para atender uma agenda que nada tem a ver com o homem médio francês”, explica.
Para o especialista, a democracia no Ocidente, em uma forma geral, “se tornou uma grife porque custa milhões para fazer um deputado, um prefeito, primeiro-ministro” e esse candidato só vai conseguir o dinheiro para ganhar eleições contando com apoio desses grandes grupos “que vão cobrar o preço depois” e a necessidade do “homem médio não é prioridade”.
“Ou se reforma esse sistema eleitoral ou vai ser sempre isso: líderes desconectados com a necessidade da sociedade. É assim com o Macron, com o Justin Trudeau do Canadá e o Joe Biden nos EUA que está fazendo uma administração desastrosa para classe média e pobre norte-americana. […] Joga-se toda culpa na Rússia, mas um dos grandes motivadores da atual crise é o fato de que as lideranças perderam completamente a conexão com o eleitor.”
Se a solução não vem através de aliados ucranianos, estaria o presidente Zelensky a fim de negociar a paz? Farinazzo acredita que sim, mas no atual momento ele não tem “autonomia para negociar uma paz mesmo que queira, já que a Ucrânia está sendo conduzida pelos ‘players’ da OTAN e dos EUA”.
Sobre o ataque ucraniano à usina de Zaporozhie, que agora está sob os cuidados da Rússia, o comandante considera que se tal ação continuar, haverá uma “grande tragédia ali”, no entanto, ressalta que talvez seja “esse o efeito desejado”.
“Esse ataque a Zaporozhie é uma prova, inequívoca, de que as coisas estão indo muito mal para os parceiros da Ucrânia, eles estão vendo que essa ‘guerra’ está perdida. […] Historicamente na Europa, quase todas as ofensivas militares foram feitas no verão, o verão europeu está acabando e Kiev não fez uma ofensiva até agora, e dificilmente conseguirá fazer no outono ou no inverno. Em termos militares, quer dizer que a capacidade que os ucranianos teriam de fazer uma grande ação para recuperar terreno, essa oportunidade já passou, e os ‘players’ em Washington, Berlim, Londres, Paris sabem disso.”
Portanto, “esses aliados podem estar forçando [através de uma tragédia como ataque a uma usina nuclear] uma comoção internacional para que se obtenha um desfecho minimamente favorável para essa aliança”, sendo essa “uma aposta bastante arriscada e irresponsável”.
De acordo com o Ministério da Defesa russo, no total, 267 aviões ucranianos e 148 helicópteros, 1.757 veículos aéreos não tripulados, 366 sistemas de mísseis antiaéreos, 4.340 tanques e outros veículos blindados de combate, 800 sistemas de foguetes de lançamento múltiplo, 3.312 artilharias de campanha e morteiros, e 4.938 unidades de veículos militares especiais foram destruídos durante a operação russa na Ucrânia.