Por Agata Vaz de Lima, Maria Clara da Silva Batista e João Pedro Carvalho
Em 2006, Danusa Lisboa tinha 18 anos e morava no Quilombo Mesquita, prestes a concluir o ensino médio. Naquele ano, a Fundação Cultural Palmares reconheceu oficialmente a comunidade como remanescente de quilombo. Hoje, quase 20 anos depois, Danusa, agora doutoranda em Agronomia na Universidade de Brasília, vê o território onde nasceu ainda sem o título coletivo que garantiria à comunidade a posse legal da terra.
Localizado em Cidade Ocidental, Goiás, a 44 quilômetros de Brasília, o Quilombo Mesquita abriga cerca de 3,5 mil moradores, cuja história de ocupação local remonta a 279 anos. A certidão emitida pela Fundação Palmares reconhece a comunidade, permitindo acesso inicial a algumas políticas públicas, contudo, não garante a propriedade definitiva do terreno. Sem o título definitivo expedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a posse da terra é informal e sujeita a conflitos.
Em julho de 2025, a Justiça Federal determinou que o Incra concluísse o processo de regularização fundiária em até 12 meses. Porém, cinco meses após essa decisão, o processo ainda não avançou, aguardando a publicação oficial da portaria que reconhece o território.
A demora faz com que muitas famílias permaneçam em situação de vulnerabilidade. Sem a titularidade, elas têm dificuldade de acessar crédito, programas de apoio e não possuem garantias para investir no desenvolvimento local. A comunidade também sofre pressão da especulação imobiliária, ameaçando seu modo de vida tradicional. Conforme relata Danusa: “Sabemos que temos direito a programas de agricultura familiar, moradia e infraestrutura, mas esses benefícios ainda não chegam.”
De acordo com dados do Censo Demográfico do IBGE de 2022, apenas 4,7% dos quilombolas no Brasil vivem em territórios com título definitivo.
A longa luta pela regularização
A decisão judicial mencionada é resultado de ação civil pública do Ministério Público Federal contra o Incra. Ela exige que o Incra publique a Portaria de Reconhecimento do Território Quilombola e comece a desintrusão, isto é, a retirada de ocupações não quilombolas. A desintrusão é fundamental para avançar na titulação definitiva, que tornará o território inalienável, protegendo-o de venda ou perda da posse.
Em resposta, o Incra informou que o processo já está próximo da fase de publicação da portaria, prevista para o início de 2026, seguido dos demais passos até a emissão final do título. Também esclareceu que a regularização de comunidades quilombolas é um processo complexo, exigindo várias etapas para assegurar legalidade e evitar judicializações, por isso não há prazo médio definido para conclusão.
Sandra Pereira Braga, presidente da Associação do Quilombo Mesquita, destaca a importância da titulação para que as pessoas permaneçam ou retornem aos territórios de seus ancestrais: “Ser quilombola é reconhecer a origem ancestral, perceber que alguém antes de nós deixou este legado. Sem esse sentimento de pertença, a identidade desaparece.”
Memória e tradição
O Quilombo Mesquita surgiu há cerca de 279 anos a partir da doação de terras feita por um português, João Mesquita, a três mulheres escravizadas. Essas mulheres deram origem às famílias que hoje compõem a comunidade, como Lisboa da Costa, Teixeira Magalhães, Pereira Braga e Pereira Dutra.
Sandra Pereira Braga, que cresceu na comunidade e atualmente coordena a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), lembra as histórias de seu avô sobre a importância da comunidade e da luta coletiva. Para ela, o quilombo representa uma grande família organizada que mantém suas raízes e convivência circular.
Danusa Lisboa lembra que o protagonismo feminino é essencial na identidade local, pois o quilombo se formou pela agricultura e foi construído por mulheres, que ainda hoje lideram a luta pela permanência na terra.
Vida comunitária e desafios
Muitos moradores ainda vivem da agricultura familiar, sustentando suas famílias com práticas que atravessam gerações. José Roberto Pereira Braga, produtor rural nascido e criado no quilombo, valoriza a vida simples e independente no campo, destacando a autonomia em relação à rotina urbana.
Porém, a falta de apoio financeiro limita o desenvolvimento local. Júlio Pereira Braga, quilombola da região, destaca que sem capital para investir, a terra sozinha não resolve os desafios econômicos. Para ele, o reconhecimento jurídico só será eficaz se vier acompanhado de políticas públicas que garantam infraestrutura e autonomia econômica.
Apesar de terem documentos oficiais como o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), publicado pelo Incra em 2011, o acesso a políticas de agricultura familiar continua difícil sem o título coletivo. Segundo Danusa, para obter crédito como quilombola é necessário o documento de titulação, o que ainda não está disponível à comunidade.
A agricultura local continua forte, com o cultivo de mandioca, tangerina e principalmente marmelo, fruta símbolo do quilombo. Danusa destaca o marmelo como representação da força agrícola e resistência cultural.
Apesar de sua contribuição para a construção de Brasília e sua importância histórica para o Distrito Federal e Goiás, a comunidade ainda se sente invisibilizada pelo poder público. Danusa enfatiza a luta pela valorização e respeito ao território e à história do Quilombo Mesquita.
