Por dia, ao menos oito guardas-civis metropolitanos são afastados por problemas mentais na cidade de São Paulo. Foram 3 217 licenças no ano passado, de acordo com os dados da Secretaria Municipal de Gestão da Prefeitura obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo. É a taxa mais alta de afastamento de servidores da segurança pelo menos desde 2008. O número praticamente dobrou em relação a 2015, quando houve 1.762 casos
Na prática, o efetivo de 5,8 mil guardas-civis, que já é considerado abaixo do aceitável pela categoria, fica comprometido. Uma estimativa do Sindicato dos Guardas-Civis Metropolitanos de São Paulo (Sindguardas) aponta ainda que ao menos 900 GCMs estão em funções readaptadas, ou seja, não podem trabalhar na rua e fazem a ronda de suas bases ou se ocupam de trabalhos administrativos.
Em dez anos, o número de guardas não aumentou na cidade. Ao mesmo tempo, as atribuições se diversificaram: foram criadas três inspetorias da guarda florestal do Município, com efetivo de 700 pessoas, e uma da Cracolândia, com pelo menos 250 pessoas Além disso, outros 800 agentes passaram a atuar no combate ao comércio informal.
Concurso público
O ex-prefeito Fernando Haddad (PT) havia prometido nomear 1,5 mil servidores até o fim do mandato, de um concurso realizado em 2013, mas só chamou cerca de 800. Antes disso, o último processo seletivo ocorreu em 2003. A gestão do prefeito João Doria (PSDB) deve contratar o restante dos aprovados.
O atual governo também tem deslocado os servidores para agir contra pichadores. Para resolver os problemas no Município e atender a novas demandas, a Prefeitura costuma reduzir o efetivo de uma área para aumentar em outra. Reportagem do Estado revelou em 2016 que a Prefeitura tirou guardas das escolas municipais para fiscalizar camelôs e multar motoristas com radar-pistola.
O GCM Marco Antonio (nome fictício), de 38 anos, está há 15 anos na corporação e tirou em 2016 a segunda licença por problemas psicológicos. “Ficava cuidando de uma escola, me mandavam fazer operação com camelô e depois voltar para a unidade. Estava sempre no limite, pois era remanejado com frequência e sequer tinha suporte para ir embora, por mais longe que fosse o trabalho.”
Marco Antonio afirma que o trabalho piorou ao longo dos anos, pois, segundo ele, a GCM passou a ser vista como um “faz-tudo” da cidade. “Os inspetores querem abraçar tudo, mas não existe pessoal para isso. Eu não aguentei a pressão e comecei a trazer o problema para dentro da minha casa. Gritava com a minha mulher, com os meus filhos. Vi que precisava parar.”
O guarda-civil conta que uma das piores partes do trabalho era lidar com moradores de rua. “A briga é constante. Nós precisamos ajudar a remover as coisas, mas no fim das contas aquilo é a moradia deles. Sempre vão lutar, atacar.”
Ele conta que viu um amigo ser atacado com uma garrafa quebrada no pescoço durante uma operação no centro. O rapaz quase morreu. “Nunca me recuperei.” Desde o primeiro afastamento, atua como readaptado e não tem mais porte de arma. “Sou pressionado constantemente para tirar de novo.”
Os problemas do guarda-civil metropolitano Felipe Souza (nome fictício), de 34 anos, começaram ainda no treinamento. Mesmo entrando na Guarda como portador de deficiência física – ele tem dificuldade para andar -, o GCM afirma que foi humilhado e obrigado a fazer as atividades como qualquer outro. “Eu tenho laudo médico, não posso correr. Mas sempre me trataram como preguiçoso.” Souza conta que reclamou à Ouvidoria e um supervisor foi afastado.
Quando foi às ruas, porém, Souza se envolveu em um episódio com tiroteio. Houve uma ocorrência em uma favela da zona leste e ele atirou contra o ladrão. “O inspetor logo tirou minha arma e me jogou para trabalhar à noite. Eu me desesperei e perguntei: o senhor vai me colocar no perigo sem estar armado?”
Alguns meses depois ele foi assaltado em um ônibus, na saída do trabalho. “Se o ladrão olhasse minha mochila e visse o uniforme, eu ia morrer. Fiquei muito nervoso, me tornei uma pessoa insegura, não conseguia mais ir à rua e só ficava fazendo trabalho de escritório.”
Diagnóstico
Em nota, a atual gestão diz que trabalha “no diagnóstico de todas as áreas, incluindo a questão do absenteísmo”. O ex-prefeito Fernando Haddad (PT) não comentou o caso, mas sua assessoria orientou que o jornal O Estado de S. Paulo procurasse o ex-comandante Gilson Menezes, que não foi localizado.
“Eles fazem jornada acima do normal e não tiram folgas”
O presidente do Sindguardas, Clóvis Roberto Pereira, se surpreendeu com os dados e afirmou que a maioria dos afastamentos de GCMs está ligada ao estresse no trabalho, por causa da falta de efetivo.
“Eles fazem uma jornada maior do que o normal e não conseguem tirar folgas. Só de março de 2015 para cá, o efetivo diminui em cerca de 120 pessoas e há 910 readaptados”, disse ele. Segundo Pereira, hoje, para realizar todas as atividades, o efeito da Guarda deveria ser de pelo menos 20 mil pessoas.
De acordo com a advogada Samara Rodella, que atua com guardas-civis e policiais, um dos maiores problemas dos clientes é que eles são obrigados a trabalhar muito mais do que podem e deveriam. “Há uma impotência do guarda-civil diante de tanta injustiça e perseguições. O afastamento vira uma válvula de escape.”
Segundo Samara, a Guarda costuma colocar a corregedoria para investigar os afastados. “Em vez de ajudá-los, (a GCM) expõe sua privacidade, tirando fotos do cotidiano com intuito de prejudicar ainda mais.”