Governo se movimenta para impedir que Omar Aziz e Renan Calheiros liderem a comissão que investigará a pandemia no Senado. Além de apurar conduta de Pazuello e ouvir cientistas, parlamentares miram a política deliberada em defesa da hidroxicloroquina
O Palácio do Planalto ainda não reconheceu a derrota para a oposição na instalação da CPI e manobra para impedir que o senador Omar Aziz (PSD-AM) assuma o comando dos trabalhos e indique como relator o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Esse movimento ocorre apesar de o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), ter dito a ambos que o presidente Jair Bolsonaro não se opõe a que Aziz e Calheiros assumam, respectivamente, os dois cargos. Ontem, o senador governista Eduardo Girão (Podemos-CE), que havia apresentado o pedido de uma CPI para investigar estados e municípios, anunciou que pretende disputar a presidência da CPI. O senador Ciro Nogueira (PP-PI), aliado incondicional de Bolsonaro, voltou a insistir que o centro das investigações deve ser o desvio de recursos destinados pelo Ministério da Saúde aos governadores e prefeitos.
Na sexta-feira, o chefe da casa Civil, general Luiz Ramos, fez a última tentativa de evitar que o senador Renan Calheiros fosse o relator da CPI, mas não teve sucesso. Diante disso, o objetivo do governo passou a ser derrotar Aziz, visto como uma ameaça ao governo, principalmente porque a crise da saúde em Manaus é o principal objeto de investigação da CPI. Mirando nessa direção, o alvo principal será o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e o grupo de militares que comandou a pasta na sua gestão de forma desastrosa. Preocupado com a situação, Bolsonaro pretende, inclusive, manter incorporar Pazuello ao seu estado-maior no Palácio do Planalto, nomeando o para a Secretaria de Modernização do Estado.
O governo só conta com quatro senadores na comissão. Além de Girão e Nogueira, são aliados Marcos Rogério (DEM-RO) e Jorginho Melo (PL-SC). Aziz, Renan, o líder do MDB, Eduardo Braga (AM), e Tasso Jereissati (PSDB), divergem do grupo assumidamente oposicionista — Randolfe, Humberto Costa (PT) e Otto Costa (PSD-BA) — apenas por causa da política econômica. Esse “grupo independente” porá o governo nas cordas durante a CPI.
Vice-presidente da CPI, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), autor do requerimento de instalação da CPI e notório oposicionista, reiterou ontem que a CPI investigará a crise do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus e outros fatos relativos à atuação do governo durante a pandemia, como atraso na compra de vacinas e a falta de insumos para funcionamento das UTIs. Entretanto, o primeiro objetivo será reunir os principais cientistas do país para mudar o curso do combate à pandemia. “Nós não podemos mudar o começo da história da pandemia, mas ainda podemos mudar o final. Vamos convocar os melhores infectologistas, epidemiologistas, biólogos e sanitaristas para isso”, disse o senador.
Randolfe elogiou a atuação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-RJ), por ter instalado a CPI conforme o requerimento que apresentou e por ter assegurado condições plenas para o seu funcionamento, dentro das condições previstas nos protocolos de segurança sanitária. “O presidente Pacheco não interferiu no funcionamento da comissão”, destacou, a propósito da batalha surda pelo controle das investigações que ocorre nos bastidores. Segundo Randolfe, o senador Alessando Vieira (Cidadania-SE), que é delegado de polícia e seu suplente, está preparando um roteiro para as investigações.
Cloroquina
Uma das linhas de investigação da Comissão será o rastro da compra de grandes estoques de hidroxicloroquina, apesar da grande quantidade produzida pelo laboratório do Exército, a mando do presidente Bolsonaro: ainda restam 1,8 milhão de comprimidos nos estoques. Serão investigados o empresário Renato Spallicci, dono do Laboratório Apsen, que produz o Reuquinol, do qual Bolsonaro fez propaganda em uma de suas livres. A empresa assinou dois contratos de empréstimo com o BNDES em 2020, no total de R$ 153 milhões, para investir em atividades de pesquisa e ampliar sua capacidade produtiva.
Outro que está na mira da CPI é Carlos Sanchez, dono dos Laboratórios EMS e GERMED, que produz um genérico do medicamento. Por duas vezes, o empresário se reuniu com Bolsonaro, antes da aprovação da Anvisa para testar a hidroxicloroquina contra a covid-19. Ogari de Castro Pacheco, dono do Laboratório Cristália, que recebeu a visita do presidente Bolsonaro na inauguração de uma das plantas do laboratório, em Itapira (SP), também será investigado. O laboratório francês Sanofi-Aventis, que tem autorização para vender o medicamento no Brasil, do qual o ex-presidente dos EUA Donald Trump é um dos proprietários, também está no raio de ação da CPI. O deputado Eduardo Bolsonaro fez propaganda do Plaquino, a hidroxicloroquina francesa.
Impactos imediatos no pleito de 2022
As implicações políticas da CPI da Covid, maior preocupação do Palácio do Planalto, podem ser maiores ou menores a depender do andamento dos trabalhos e da qualidade das informações reunidas para fundamentar a investitação que será conduzida no Senado Federal. Enquanto parlamentares de oposição estão convencidos de que é possível realizar oitivas e outros procedimentos, há uma profusão de dados que ajudarão os senadores a medir o grau de responsabilidade de governo federal no quadro dramático da pandemia no Brasil.
Na semana passada, um estudo publicado pela revista Science concluiu que a ausência de uma política naciona deu força ao vírus. A descoordenação no combate à pandemia contribuiu para acelerar o númoer de infecções e de mortes, e que muitas medidas tomadas por governadores e prefeitos foi minada pela inércia do Executivo federal. Os dados já estão em poder de parlamentares que vão atuar na CPI e devem embasar acusações graves contra agentes políticos.
No Congresso, o clima é de que a CPI vai avançar rapidamente, e que as evidências que advogam contra o governo estão claras e públicas. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos autores da criação da CPI, destaca que os trabalhos devem avançar mesmo com a pandemia ainda em curso. “Não existe nenhum tipo de restrição à coleta de depoimentos e oitiva de testemunhas durante a pandemia. Isso pode ocorrer no sistema presencial, no Senado e também no semipresencial”, afirma.
Especialistas calculam o impacto dos trabalhos da CPI nos planos eleitorais de Jair Bolsonaro, apontado como o principal responsável pela situação calamitosa da covid no Brasil. Márcio Coimbra, coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais Governamentais da Faculdade Mackenzie, em Brasília, acredita que o descalabro é suficiente para mudar o jogo em 2022. “O estrago na campanha do Bolsonaro em 2022 pela pandemia e pela economia já está feito. Mas, uma CPI que aponte culpados e deixe muito clara a omissão do governo pode cair no colo do presidente, sim, como um crime de responsabilidade. Pode virar um processo de impeachment. Não um que se concretize, mas que venha a enfraquecê-lo durante o processo eleitoral”, pontua.
Coimbra vê chances de Bolsonaro ser derrotado nas urnas, pois carregará a responsabilidade por centenas de milhares de mortes pela covid-19. “O meu posicionamento é que Bolsonaro é uma carta fora do baralho para 2022. Não acredito, inclusive, que ele vá para o segundo turno se houver uma candidatura de centro. O eleitor prefere escolher a velha política, que sabe fazer gestão, em detrimento da ‘nova política’ representada por Bolsonaro. Vimos isso em 2020 e a tendência é que se repita em 2022”, avalia Coimbra.
O cientista político André Rosa tem outra visão. Ele não acredita que a CPI, necessariamente, significará uma derrota de Bolsonaro em 2022. “Basta lembrar que Dilma Rousseff foi reeleita no meio da CPI da Petrobras. Então não vejo como tão alarmante desta forma”, conta. Rosa afirma que o problema, para o presidente, não é a CPI em si, mas a possibilidade de que adversários políticos explorem a fragilidade do governo com as investigações. “Era tudo o que os candidatos concorrentes queriam. Ele pode perder a eleição por causa da CPI? Pode, mas ainda não é possível saber. A questão é: vai perder votos? Com certeza, sim, avalia.
O deputado federal Afonso Florence (PT-BA), no entanto, considera o presidente próximo de um processo de impeachment. Na presidência da Câmara, já são mais de 100 pedidos. “Acho que Bolsonaro está na antessala de um processo de impeachment. A pandemia é insustentável.
Vimos um discurso polido do Pacheco sobre a CPI porque ele sabe que qualquer passo nesse sentido poderia deixar o presidente nu. […] Mas os fatos são gravíssimos, com atos contra a democracia, contra o isolamento e as vacinas. Uma situação de instabilidade pode migrar rapidamente para um processo de afastamento”, acredita. “Falta pouca coisa para um processo de afastamento. Resta uma blindagem de papel”, completa.