Pessoas com doenças crônicas como artrite reumatoide e lúpus enfrentam desabastecimento de medicamentos, que foram utilizados, geralmente sem comprovação científica, na tentativa de combater casos da covid-19 ao longo dos últimos meses
O uso de medicamentos na tentativa de combater a covid-19, como no caso do tratamento precoce — sem comprovação científica — desencadeou uma sobrecarga na demanda de medicamentos que eram utilizados para tratar outras doenças, principalmente na área da reumatologia. A alta procura por cloroquina, hidroxicloriquina, azitromicina e tocilizumabe afetou o abastecimento desses medicamentos na rede pública e privada.
“No início da pandemia, a gente percebeu uma falta da hidroxicloroquina nas farmácias de Alto Custo, nos hospitais e na rede privada. Pacientes com lúpus necessitam deste medicamento de forma crônica e sofreram com esse desabastecimento que, posteriormente, foi sanado”, pontua a reumatologista Tainá Carneiro. “Agora, os pacientes reumatológicos estão enfrentando a falta de imunobiológico (como o tocilizumabe), que também foi utilizado em casos de covid-19”, destaca.
De acordo com a reumatologista, sem a medicação para inibir a evolução de doenças como artrite reumatoide e o lúpus, esses pacientes começam a ter sintomas mais graves da inflamação, com dores crônicas e, em alguns casos, podem evoluir para sequelas. A Sociedade Brasileira de Reumatologia estima que, no Brasil, existam cerca de 10 milhões a 15 milhões de pacientes reumatológicos. Porém, não dá para dimensionar o impacto no tratamento causado pela falta dos fármacos.
Diagnosticada com artrite reumatoide, Jaqueline Couto Moreira, 30 anos, sentiu o impacto da falta do medicamento que inibe a doença em abril deste ano, quando ela soube que o imunobiológico estava esgotado na rede privada. “O tocilizumabe foi o único que deu certo para meu tratamento. Utilizo ele há mais de cinco anos e nunca tive problemas. Agora, está em falta e meu médico me passou uma outra medicação inferior, que não está funcionando”, conta a moradora de Águas Claras.
Jaqueline explica que a doença é autoimune e age como uma grande batalha no organismo. “O organismo interpreta as células localizadas nas juntas como um vilão. É como se meu corpo estivesse se combatendo. E o que a doença destruiu não tem como recuperar. Por isso, a medicação é importante para parar a ação inflamatória”, pontua. O tocilizumabe é um fármaco caro, custa, em média, R$ 10 mil a dose.
Durante a pandemia e a escassez do medicamento, o que tem ocorrido é um superfaturamento na venda do imunobiológico. “A gente tem relato de que há um mercado paralelo para o tocilizumabe, custando de cinco a 10 vezes o valor de mercado. E ante o desespero, alguns familiares de pacientes reumatológicos e até de pessoas com casos graves de covid-19 têm buscado essa alternativa”, destaca Ricardo Xavier, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia. “Mas tudo isso são relatos que a gente ouviu. Não temos comprovação. Porém, a sociedade tem alertado os pacientes sobre essa situação”, pondera.
Ele explica que o tocilizumabe começou a ser usado para os casos da covid-19 por ser um inibidor de citocina, componente que causa inflamação no corpo. A grande quantidade de citocina no organismo é um dos principais fatores de lesão inflamatória grave no pulmão em casos graves do novo coronavírus. Estudos indicaram resultados positivos no uso do medicamento em pacientes com covid, porém, em outros foram neutros. “O que começou a ocorrer foi um uso generalizado deste medicamento, e a empresa farmacêutica não está conseguindo dar conta dessa demanda. Nossos pacientes não estão tendo acesso ao tocilizumabe na rede privada e nos planos de saúde. Na rede pública, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o medicamento ainda tem em estoque, porque a destinação do Ministério da Saúde está voltada apenas para os pacientes reumáticos”, expõe Ricardo Xavier.
Eficácia
A médica intensivista Adele Vasconcelos, do Hospital Santa Marta, ressalta que a eficácia do tocilizumabe em alguns casos da covid-19 foi comprovada recentemente pela Anvisa. No entanto, ele não foi incorporado oficialmente nos protocolos de tratamento para o novo coronavírus. “O Ministério da Saúde ainda não liberou o uso oficial, mas temos um protocolo de quais casos esse medicamento pode ser usado. Não é em qualquer pessoa, porque tem muito efeito colateral. É necessário ter certeza de que o paciente não tem nenhuma outra infecção secundária”, afirma.
“É preciso conscientizar a população e a classe médica quanto ao uso adequado desse medicamento. A indicação é bem restrita, não vai salvar todo mundo. Se for bem utilizado, não vai faltar para quem precisa”, pondera a médica, que acredita que pode haver novos desabastecimentos de outras medicações.
Além do tocilizumabe e da hidroxicloroquina, a azitromicina também sofreu alta demanda nos hospitais e causou desabastecimento em alguns períodos durante a pandemia. O fármaco é indicado para tratamento de infecções bacterianas respiratórias, como bronquite e pneumonia.
O medicamento começou a ser utilizado também em casos do novo coronavírus. A gerente de atenção hospitalar de Assistência Farmacêutica da Secretaria de Saúde, Julia Dantas, explica que, ao longo do ano passado e no primeiro semestre deste ano, a rede pública enfrentou desabastecimento cíclicos da hidroxicloroquina e azitromicina. No entanto, atualmente, o estoque desses dois medicamentos está positivo.
“A gente tem relato de que há um mercado paralelo para o tocilizumabe, custando de cinco a 10 vezes o valor de mercado”
Ricardo Xavier, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia
Palavra de especialista
Só a vacina combate a covid
“No início da pandemia, com base em alguns estudos in vitro, havia uma especulação da utilização da hidroxicloroquina como uma forma de inibir a entrada do novo coronavírus na célula, como um inibidor da inflamação. Porém, já se sabe que não há comprovação de eficácia deste medicamento nos casos de covid-19. Estudos apontam que a utilização da hidroxicloroquina pode surtir efeito deletério, ou seja, piorar a situação do paciente, podendo contribuir para o óbito.
Não há indicação do uso para os casos de covid-19. Por outro lado, temos a utilização do imunobiológico tocilizumabe, que pode ser administrado em algumas situações com pacientes graves, mas que não estão em ventilação mecânica. Com a covid-19 e o aumento da procura por este medicamento, a gente observa um valor de venda cinco vezes maior, entre R$ 20 mil e R$ 25 mil. Não é um medicamento comprado pela Secretaria de Saúde, mas é ofertado pelo Ministério da Saúde para pacientes reumatológicos.
As pessoas precisam entender que não há um medicamento capaz de evitar a forma grave da covid-19, para isso, existe a vacina. Quando se pensa na proteção vacinal, temos um cenário com a diminuição no número de internação, o que gera um consumo menor de medicamento. É preciso focar em um diagnóstico precoce e na vacinação”.
Lívia Vanessa Ribeiro, infectologista da Secretaria de Saúde
Sem acompanhamento
Outro problema enfrentado por pacientes reumatológicos foi a desassistência no acompanhamento médico. Com a pandemia e o grande volume de pacientes com covid-19, os hospitais tiveram de remanejar as consultas ambulatoriais e limitar a quantidade de atendimento. “Em termos de números de consultas, os pacientes da rede pública enfrentaram uma certa dificuldade. Na rede privada, a telemedicina auxiliou bastante no acompanhamento da evolução da doença”, conta a reumatologista Tainá Carneiro, que trabalha no sistema público de saúde e no privado.
“Por outro lado, também tivemos uma baixa procura desses pacientes por medo de sair de casa, de ir ao hospital e pegar covid-19. Sem contar que outros serviços necessários para o tratamento, como a reabilitação com fisioterapia, também foram impactados pela pandemia”, ressalta Tainá. De acordo com o levantamento da Secretaria de Saúde, em 2020 foram realizados 37.919 atendimentos com médicos reumatologistas em 16 unidades da Rede de Saúde do DF. Até maio deste ano, foram registrados 13.537 procedimentos nessa especialidade.
Jeisa Loiola, 28, teve o tratamento interrompido com a dificuldade de conseguir medicamento e consultar um reumatologista. Ela descobriu a artrite reumatoide em 2019; sempre enfrentava muitas dores, mas antes não sabia o que era. Em 2020, começou o tratamento na rede pública e, em três meses, o acompanhamento clínico foi suspenso devido à demanda dos casos de covid-19. “Eu tinha remédio até outubro de 2020, mas depois acabou e não consegui comprar. Só agora, em junho, consegui a consulta, e me passaram outra medicação. Porém, no posto de saúde aqui em Santa Maria ela está em falta. Estou aguardando chegar, e não posso pegar na farmácia de Alto Custo porque não tenho cadastro”, afirma Jeisa, que, no ano passado, enfrentou uma luta para conseguir comprar a hidroxicloroquina para conter a artrite reumatoide.