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sexta-feira, 22/11/2024
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Na Hungria, a eleição que pode desencadear a próxima crise europeia

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Criticado por medidas antidemocráticas, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán busca o quinto mandato contra uma frente ampla inédita da oposição

(Getty Images/Akos Stiller/Bloomberg)

Em dezembro de 2021, o governo da Hungria, país de 9,7 milhões de pessoas na Europa Central, anunciou que aumentaria as aposentadorias em 5%. E mais: instituiria um 13º salário aos aposentados. “E não vamos parar por aí”, disse o primeiro-ministro Viktor Orbán. Meses mais tarde, o governo declarou nesta semana que seguirá reajustando os salários se a guerra na vizinha Ucrânia tornar a inflação húngara muito alta.

Anúncios como esses se tornaram rotina na campanha eleitoral da Hungria, que vai às urnas neste domingo, 3, para eleger o próximo Parlamento. O partido de Orbán, o nacionalista-conservador Fidesz, disputa contra uma “frente ampla” da oposição, um bolo dos seis maiores partidos do país que vai da esquerda à direita e tem o conservador Péter Márki-Zay como candidato.

Como a Hungria é um regime parlamentarista, em situações normais, os partidos húngaros de diversos matizes ideológicos brigariam entre si para conseguir maioria no Parlamento de 199 cadeiras.

Mas esta não é considerada uma eleição normal.

No cargo por quatro mandatos (desde 2010 e, antes disso, entre 1998 e 2002), Orbán tem sido questionado a cada ano por enfraquecer instituições, sequestrar o sistema judiciário a seu favor e usar a máquina pública e a imprensa alinhada ao governo para esmagar o espaço da oposição.

A oposição húngara vive um sentimento de “agora ou nunca” — se Orbán for eleito novamente, há o temor de que seu poder seja ainda mais ampliado.

“É o maior esforço da oposição em 12 anos. Ficou claro que nenhum partido teria chance de conseguir maioria se disputassem separados”, diz Petra Bárd, pesquisadora do Instituto da Democracia da Universidade da Europa Central e professora da Universidade Eötvös Loránd em Budapeste.

Cartazes de Márki-Zay e Orbán na Hungria: aos 49 anos, candidato da oposição representa frente única que vai da esquerda à direita (AFP/AFP)

A candidatura de oposição chegou a ter boas perspectivas no início da campanha, mas pesquisas recentes mostram favoritismo para Orbán. O premiê tem um eleitorado com voto mais decidido, e leve alta nas intenções de voto após o início da guerra na Ucrânia.

“Geralmente, toda guerra é em favor do governo no poder, porque as pessoas preferem ter estabilidade em vez de mudanças”, diz András Gero, historiador e diretor do Instituto Habsburg em Budapeste. “As pessoas têm o sentimento de que suas vidas como são estão em perigo e que é preciso mantê-las.”

O resultado tende a ser apertado para qualquer lado. Se a oposição vencer, terá maioria apenas simples, possivelmente não conseguindo passar mudanças que precisem de dois terços do Parlamento, além de lidar com possíveis embates internos em uma coalizão tão diversa. Já Orbán, ainda que vença, não repetirá a avalanche de mais de 130 cadeiras que tem atualmente.

“Mas Orbán não precisa mais de dois terços, porque todo o cenário está criado a seu favor: ele colocou funcionários, nomes do judiciário que deveriam investigá-lo, em posições chave e mandatos de muitos anos. Então, ele está muito bem posicionado não só para governar o país, mas para gravar seu poder em pedra sem que haja oposição significativa”, diz Bárd.

A Hungria entrou também no radar dos brasileiros sobretudo nos últimos meses, após uma visita do presidente Jair Bolsonaro a Orbán, a quem chamou de “irmão”. Gero diz que a visita foi coberta pela TV local, mas com pouca repercussão entre os húngaros. “Já o Pelé, sim, é absolutamente popular aqui, visitou muitas vezes”, brinca.

Mudar por dentro

Nas duas últimas eleições, em 2014 e 2018, observadores internacionais foram categóricos em dizer que as eleições húngaras foram livres, mas não justas.

Com maioria avassaladora no Parlamento, Orbán conseguiu alterar a Constituição, mudando distritos eleitorais para favorecer o Fidesz. O caso húngaro é visto como um exemplo de como mudanças dentro do próprio sistema podem minar instituições democráticas, ainda que sem uma ditadura efetiva. É o que tem se chamado na Europa de um “governo iliberal”.

Marcha pró-Orbán em 1º de abril, na cidade de Szekesfehervar: apoio do premiê é grande em cidades menores e entre população mais velha (Akos Stiller/Bloomberg/Getty Images)

“A sociedade é constantemente lembrada de que estar em bons termos com o Fidesz do senhor Orbán e com o governo é uma condição necessária em muitos aspectos da vida social, econômica e até cultural”, diz Adám Zoltán, especializado em econômica política e professor na Universidade Corvinus de Budapeste (as opiniões expressadas por ele são pessoais e não representam a opinião de sua instituição).

Há visões distintas dentro da Hungria. Orbán tem apoio sobretudo entre a população mais velha, fora das grandes cidades e com pouco acesso a informação que não seja na língua húngara.

É neste grupo que o governo deposita seu foco, com falas frequentes contra minorias LGBTQIA+, imigrantes e em defesa da família – e com medidas financeiras práticas, como o aumento das aposentadorias ou auxílios.

“O governo tem perseguido uma política de permanente mobilização do eleitorado nesses últimos 12 anos”, diz Zoltán, “focando na criação e estabilização de um eleitorado ‘duro’ e devoto do Fidesz, que segue o senhor Orbán independentemente de qualquer coisa.”

Um dos exemplos do uso de temas de costumes para energizar apoiadores vem na própria eleição deste domingo, quando, além de votar para o Parlamento, os húngaros responderão a um referendo sobre se são favoráveis a transição de gênero nas crianças. A oposição questiona o referendo junto à eleição e aponta ser uma tática para desviar o foco.

Marcha anual do orgulho LGBTQA+ em Budapeste, em 2021: governo colocou questão sobre gênero em referendo junto à eleição (Janos Kummer/Getty Images)

Orbán e seus apoiadores, por sua vez, afirmam que a Hungria tenta apenas “reconquistar sua soberania”. O discurso vem em um país historicamente palco de ocupações e ataques — do fim do grandioso Império Austro-Húngaro à posterior ocupação nazista e, por fim, uma república na esfera soviética e com pouca autonomia.

Entre episódios marcantes da história recente estão, por exemplo, a Revolução Húngara de 1956. Civis e grupos progressistas saíram às ruas para apoiar movimentos de reforma no governo, pedindo mais autonomia frente a Moscou. Foi um massacre, como seria anos mais tarde a Primavera de Praga na República Tcheca, em 1968.

“São países na Europa Central notadamente marcados por esse trauma, gerações mais velhas que são saudosistas de um certo passado de glórias, ou que até hoje querem se ver livres de não se sabe o que — e nomes ultraconservadores como Orbán agora direcionam esse inimigo para Bruxelas, para a União Europeia”, diz o filósofo e historiador Estevão Chaves de Rezende Martins, da Universidade de Brasília.

Ruínas em distrito de Budapeste em 1956: revolução húngara não conseguiu trazer reformas em meio ao domínio soviético (FORTEPAN / Nagy Gyula/Wikimedia Commons)

“No início, Orbán utilizou essas forças nacionais conservadoras que já existiam na cultura húngara, dizendo que apoia a família, os valores cristãos. Mas teve também uma espécie de apoio econômico e intelectual, sobretudo entre empresários e o judiciário”, diz Rezende.

“Até que, com o tempo, o que era uma maioria estreita foi crescendo e tornando quase impossível que a oposição o ameaçasse.”

A inesperada liderança húngara

Momentos como a crise econômica europeia pós-2008 e a crise dos refugiados em 2015 foram divisores de águas na política da Hungria. Orbán ganhou popularidade por choques com a ex-chanceler alemã, Angela Merkel, que se notabilizou por defender que a União Europeia recebesse (e dividisse) parte dos refugiados.

O sentimento anti-imigração e nacionalista na Hungria cresceu, capitalizado por Orbán, assim como em toda a Europa — levando a episódios como o Brexit no Reino Unido e a chegada da extremista AfD ao Parlamento alemão. Pesquisadores colocam neste grupo, ainda, marcos como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 e de Bolsonaro no Brasil em 2018.

“De modo geral, a extrema-direita no mundo passou por uma chamada ‘quarta onda’, com pontos em comum como defesa de supostos valores judaico-cristãos, nacionalismo e contra minorias como a comunidade LGBTQIA+”, diz Karina Stange Calandrin, doutora em Relações Internacionais pelo programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais da USP e professora da Universidade de Sorocaba.

Ela aponta, no entanto, que houve derrotas recentes deste grupo: Trump perdeu a eleição nos EUA, a AfD quase não se manteve no Parlamento alemão e Benjamin Netanyahu foi derrotado em Israel. E é neste contexto que Orbán ganhou mais espaço.

“Há até pouco tempo ninguém falava do Orbán”, diz Calandrin. “Mas especialmente após a derrota do Trump, ele surge como uma figura que representa essa nova direita no mundo. Por isso, líderes como Bolsonaro e Narendra Modi [da Índia] se aproximaram muito da Hungria — e temos que considerar que é um país não tão importante globalmente.”

Bolsonaro e Orbán em Budapeste, em fevereiro: aproximação recente entre Brasil e Hungria (Janos Kummer/Getty Images)

Europa dividida

Na esfera internacional, a guerra na Ucrânia traz ainda outra frente de discussão sobre o futuro húngaro. Orbán, que é relativamente próximo do presidente russo, Vladimir Putin, tem tentado se portar como ator “neutro”, diz o cientista político Endre Borbáth, da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha.

Isso o coloca de forma oposta a vizinhos na Europa Central, sobretudo a Polônia, cujo partido conservador Lei e Justiça é o principal aliado político e ideológico da Hungria na região, mas onde o sentimento anti-Putin é também extremamente forte.

“Orbán não foi com outros países da região à visita a Kiev, e agora os quatro líderes do Visegrad [além da Hungria, o grupo inclui Polônia, República Tcheca e Eslováquia] cancelaram uma visita a Budapeste”, diz Borbáth.

“O que parece é que o Fidesz e Orbán têm ficado mais e mais isolados dentro da UE e da Otan”, completa ele, mas afirma que, caso Orbán seja reeleito, a tendência é que o premiê busque reviver a aliança com os vizinhos, sobretudo a Polônia.

Dentro de casa, diz Gero, do Habsburg, a mensagem é que a Hungria está disposta a demonstrar solidariedade com os refugiados ucranianos — foram mais de 300 mil no país até agora —, mas que a guerra “não é da Hungria”, o que agrada a boa parte da população.

Refugiados ucranianos rumo à Hungria, em março: Orbán tenta buscar neutralidade no conflito (Christopher Furlong/Getty Images)

O cenário político na Hungria é também tema central para os líderes da União Europeia, que há anos vêm sendo pressionados a lidar de forma mais assertiva com o caso húngaro.

Ao mesmo tempo, analistas afirmam que, sem um grande líder europeu pós-Merkel e com as diversas crises demandando unidade do bloco, uma briga com Orbán pode não ser o foco por ora.

“Eu não consigo enfatizar o suficiente o quanto a situação húngara é absolutamente essencial para o equilíbrio europeu”, argumenta Bárd, da Universidade da Europa Central, que tem estudado o impacto das mudanças no judiciário na relação com a UE.

“Já há casos de juízes europeus que não extraditam mais pessoas para a Polônia ou a Hungria porque não acreditam que terão um julgamento justo. Ou empresas podem temer investir porque acham que vão sempre perder um eventual processo contra o governo. Tudo isso é totalmente contra a perspectiva de um bloco de livre comércio.”

A Hungria está somente entre as 60 maiores economias do mundo, com PIB menor do que o dos próprios vizinhos da Europa Central. O comércio com o Brasil foi de apenas US$ 75 milhões em 2021. Mas é consenso que, ainda assim, o período que começa agora em Budapeste será observado com atenção em muitas partes do globo — de Brasília a Bruxelas.

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