Especialistas relatam a eliminação das disciplinas de Direitos Humanos. Entidades cobram providências e reparação à família da vítima
“Ele está melhor do que a gente aí dentro”, respondeu um dos policiais da Polícia Rodoviária Federal (PRF) aos apelos do sobrinho de Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, que estava preso em um carro com gás lacrimogêneo jogado pelos agentes.
A truculência dos integrantes da PRF, em atos e palavras, acendeu o debate sobre o preparo dos agentes da lei em operações de segurança. No dia da tragédia em Sergipe, a corporação afirmou que a vítima resistiu à abordagem e precisou ser contida, dando a entender que não houve problemas na operação policial.
Ontem, diante da repercussão do caso, a corporação voltou atrás e anunciou que “instaurou processo disciplinar para elucidar os fatos e os agentes envolvidos foram afastados das atividades de policiamento”. A atitude violenta dos policiais, culminando na morte de Genivaldo, trouxe à tona um problema grave: o desconhecimento dos profissionais de segurança em relação aos direitos humanos.
Disciplina integrante no Curso de Formação Profissional (CFP) da Polícia Rodoviária Federal (PRF), obrigatório para todos os profissionais que ingressam na corporação, a matéria específica sobre Direitos Humanos foi lentamente extinta da base curricular dos agentes da corporação.
“A disciplina de Direitos Humanos e Integridade (DHI) teve a carga horária suprimida. Os encontros presenciais foram suprimidos e as temáticas abordadas em sala serão trabalhadas de maneira transversal por todas as demais disciplinas”, relataram, ao Correio, profissionais responsáveis pelo Projeto Pedagógico de Ação Educativa de 2022 da PRF.
Entre os integrantes da PRF, há uma percepção de que essa mudança começou a partir de 2018, com a ascensão de políticos como Jair Bolsonaro e Wilson Witzel, que defendem abertamente ações violentas da polícia. “Essa forma de compreender a segurança pública fez com que desaparecessem essas disciplinas. No curso de formação de 2021, todas juntas tiveram 22h aulas. Para 2022, a programação é de 0 horas aula”, detalhou um dos instrutores da PRF, que preferiu não ser identificado para não sofrer retaliações.
“Nas polícias, em geral, existem disciplinas de humanas no treinamento dos policiais. São temas como direitos humanos, abordagens a grupos vulneráveis, por exemplo. À medida que se reduz essa grade, há uma insensibilidade do policial a essas pautas, um desconhecimento de quais são as normas nacionais e internacionais sobre isso. Sai do curso sem saber como fazer”, completou a fonte.
Falta de protocolo
O perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à tortura, Ribamar Araujo, ressalta que a cultura policial de justificativas violentas e de agressão, como a realizada com Genivaldo de Jesus, reforça a postura institucional. “Nós vemos que flagrantemente houve uma ausência do protocolo de força, coisa que a própria PRF já deveria ter assumido, e eles ainda tentaram se justificar, mas em nenhuma hipótese se justificaria ao que ficou consagrado o uso progressivo da força”, comenta.
“Eles tinham a pessoa sob sua custódia, ele estava se apresentando como alguém doente e apresentando a identificação, então era preciso outro procedimento e não aquele que foi utilizado. É possível ver a sucessão de erros cometidos na abordagem”, acrescenta Araujo.
“Eu falo com tristeza porque a PRF ainda é vista com excelência, e a gente assiste isso cotidianamente da Polícia Militar e da Polícia Civil mas é lamentável que ainda tenha tido uma nota de justificativa por parte da corporação. Concretamente eles erraram”, comentou.
Equívocos “do início ao fim”
Antes de ser trancado e asfixiado na “câmara de gás lacrimogêneo” improvisada no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Genivaldo de Jesus Santos foi alvo de xingamentos, rasteira e chutes, além de ter sido imobilizado por dois agentes que colocaram os joelhos sobre seu tórax. Vídeos de testemunhas mostram o início da abordagem à vítima e o desenrolar da ocorrência.
A truculência da ação em Umbaúba (SE) culminou na morte do homem de 38 anos e envolveu uso inapropriado de força, desrespeito a protocolos, abuso de poder e ação dolosa, avalia Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo.
“A abordagem foi errada do começo ao fim”, aponta Paes. Nas imagens, é possível ver os policiais gritando palavras de baixo calão desde o início da operação, enquanto mandam Genivaldo colocar as mãos na cabeça. “Bota a p**** da mão pra cima, c******”, berra um dos agentes, ao mesmo tempo em que manda o homem “calar a boca”.
Ao se aproximar, um dos policiais segura com uma mão os braços de Genivaldo e com a outra começa a revistá-lo. É possível ver ainda que ele tenta derrubar Genivaldo, sem sucesso. Quando finalmente conseguem derrubá-lo, um dos agentes começa a imobilização forçando o joelho sobre o tórax, em uma cena similar à ocorrida quando do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos.
Com Genivaldo já imobilizado, um terceiro agente assiste à cena com a arma apontada para o homem no chão, eventualmente pisando sobre as pernas da vítima. Durante toda a ação, ele pergunta o que está acontecendo e por que está sendo abordado, enquanto as pessoas em volta comentam que ele tem “problema mental”.
“Não vejo erro nenhum da parte do Genivaldo. A partir do momento que ele questiona a abordagem, começa a ser agredido. Mas o fato de questionar nunca pode ser enquadrado como resistência ou desobediência, como acusa a nota da PRF”, afirma Paes.
O ouvidor das Polícias de São Paulo, Elizeu Soares Lopes, considera uma ‘execução’ a morte de Genivaldo. “Qualquer ser humano que viu aquela cena não tem como não tratá-la como deplorável, injustificável. Tratou-se de uma execução, a sangue frio”, disse.
O ouvidor é um dos subscritores de pedido pela prisão preventiva dos policiais envolvidos no assassinato. A solicitação já foi enviada ao Ministério Público e ao Supremo Tribunal Federal.
Tortura e indiferença
A Anistia Internacional Brasil cobrou providências do ministro da Justiça e Segurança Pública Anderson Torres em razão da morte de Genivaldo Jesus Santos. A entidade frisa que a pasta é responsável pelo trabalho da Polícia Rodoviária Federal e exige informações sobre o afastamento dos agentes. Segundo a Anistia Internacional, a conduta dos agentes da Polícia Rodoviária Federal pode ser caracterizada como tortura, agravada por envolver agente público.
A Defensoria Pública da União também qualifica a morte de Genivaldo Santos como “um ato de tortura com uso de ‘câmara de gás'”. O episódio “revela indiferença à vida humana de grupos vulnerabilizados e invisíveis para o Estado brasileiro”.
As Defensorias Nacional e Regionais de Direitos Humanos e o Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da DPU repudiaram “com veemência” não só a conduta dos agentes da PRF, mas também a “violenta ação policial” na Vila Cruzeiro, no Rio onde 23 pessoas foram mortas durante operação conjunta das Polícias Federal, Rodoviária Federal e Militar.
A Defensoria Pública da União diz que vai acompanhar de perto as investigações e adotar “providências necessárias à reparação das vítimas e à transformação da realidade racial do país”. A Polícia Federal abriu inquérito para apurar as circunstâncias da morte de Genivaldo. Já PRF abriu procedimento disciplinar para investigar a conduta dos agentes envolvidos.
A Defensoria Pública da União também quer que o Estado reconheça o “ato ilícito praticado” na operação da Vila Cruzeiro e no episódio em Umbaúba, com a reparação das famílias. Além disso, defende a realização, às forças de segurança, de cursos preparatórios de combate ao racismo institucional e estrutural, além de formas adequadas de abordagem.