Falando do sofrimento causado pela pandemia e expressando luto pelas vítimas, primeira-dama faz discurso destoante
A primeira-dama americana, Melania Trump, fez um discurso que surpreendeu a maioria dos observadores e que foi tão diferente do que se ouviu até aqui na convenção republicana que a sensação era de que ela estava se dirigindo ao partido errado.
Melania falou abertamente da pandemia do coronavírus, reconheceu o sofrimento de centenas de milhares de famílias americanas e ofereceu palavras de conforto.
“Sei que muita gente está ansiosa, e algumas se sentem sem esperanças. Quero que você saiba que não está sozinho”, afirmou a primeira-dama.
“Desde março, nossas vidas mudaram drasticamente. O inimigo invisível causou impacto em nós todos.”
Melania não tentou defender as ações de Donald Trump no combate à crise de saúde pública, muito menos tentou encontrar culpados.
Ela mencionou a solidariedade demonstrada pelos americanos neste momento difícil, “os vizinhos ansiosos para compartilhar informações, ideias e recursos” uns com os outros.
O contraste entre o tom e as palavras escolhidos por Melania – que escreveu o discurso sozinha, segundo a Casa Branca, e não o submeteu previamente à campanha – foi marcante na comparação com as declarações públicas de Trump sobre a pandemia.
Em suas aparições diárias, ele nunca estendeu palavras de empatia para os familiares das vítimas. Há algumas semanas, questionado sobre o total de mortos, ele afirmou: “É o que é”.
O discurso da noite de ontem, no Jardim das Rosas da Casa Branca e acompanhado por cerca de cem pessoas, também não lembrou em nada a participação dela na convenção republicana de quatro anos atrás.
Na ocasião, Melania plagiou trechos inteiros de um discurso feito por Michelle Obama em 2008. O incidente foi amplamente noticiado e causou constrangimento para a campanha de Trump.
Melania Trump também falou de seu trabalho humanitário e lembrou que há poucos dias se comemoraram os cem anos da lei que finalmente deu às mulheres americanas o direito ao voto. “Temos que garantir que as mulheres sejam ouvidas.”
Foi uma raríssima oportunidade para ouvir Melania falando diretamente ao público. Diferentemente de outras primeiras-damas, ela não costuma dar muitas declarações à imprensa nem participar de eventos oficiais.
Há muita curiosidade sobre o relacionamento do primeiro-casal americano. Em mais de uma oportunidade, Melania é vista largando a mão do marido. Ela também nunca se pronunciou publicamente sobre os escândalos envolvendo supostos casos do presidente, como o caso dele com a ex-atriz pornô Stormy Daniels.
A primeira-dama mencionou alguns pilares da mensagem de Trump – as críticas à imprensa, os perigos das redes sociais. Mas, quando o fez, foi de maneira menos ferina.
Os filhos partem para o ataque
O discurso da primeira-dama chamou a atenção porque veio duas horas depois de uma longa lista de falas sombrias, acusatórias e repetitivas.
Enquanto ela pediu que as pessoas “se unam de maneira civil”, Eric Trump, filho do presidente, repetiu exaltadamente que seu pai está disposto a “brigar” pelos americanos contra o socialismo de Joe Biden.
A participação de Eric, que trabalha na empresa do pai, não teve nenhuma imaginação – com exceção das afirmações fantasiosas que ele fez, como quando disse que Trump garantiu a paz no Oriente Médio.
(Há duas semanas, os Estados Unidos intermediaram um acordo de paz entre os Emirados Árabes Unidos e Israel, mas a tensão na região permanece, e não há sinal de aproximação entre israelenses e palestinos, por exemplo.)
Ao contrário do que fez em 2016 Tiffany Trump, filha mais nova de Trump, também não tentou humanizar o candidato, contando histórias pitorescas da família e sua relação com o pai.
Ela fez um discurso político e guardou a munição mais pesada contra uma suposta conspiração da “mídia e dos gigantes da tecnologia”. Essas empresas manipulam e escondem informações e são parte de um sistema para manter a população “mentalmente escravizada”, afirmou Tiffany Trump.
Os ataques à imprensa são talvez a maior constante das declarações de Trump desde sua entrada na política. Recentemente, eles também se estendem a empresas de tecnologia, particularmente redes sociais como Twitter e Facebook, que apagaram ou apontaram informações falsas postadas pelo presidente.
O apelo à memória
Ontem, discursos de pequenos empresários, uma produtora rural e um pescador de lagostas tentaram mostrar que a economia ia de vento em popa até o início da pandemia. O apelo à memória é uma constante. O objetivo é lembrar aos eleitores que até bem pouco tempo atrás tudo estava bem — até a chegada do “vírus chinês”.
Larry Kudlow, assessor econômico sênior de Trump, disse que o governo atual “reconstruiu a economia em estagnação” deixada de herança por Obama. “Aí veio uma pandemia que aparece a cada cem anos.”
Por mais que a campanha tente recuperar essa sensação recente de otimismo, o cenário hoje é de devastação. A taxa de desemprego é a mais alta em décadas: estima-se que 30 milhões de americanos dependam do seguro desemprego.
A recessão já começou e deve ser a mais grave desde a Grande Depressão. Segundo a oposição democrata, a culpa em grande parte foi da hesitação do governo federal em levar a sério a pandemia.
Os primeiros sinais de recuperação, que se seguiram à reabertura de partes do país, estão minguando, e a Covid segue fora de controle em diversas áreas do país.
Uma convenção de controvérsias
Como tem sido a regra deste governo nos últimos três anos e meio, a noite de ontem foi repleta de polêmicas.
A primeira foi a fala de Mike Pompeo. Rompendo uma tradição de décadas, ele foi o primeiro secretário de Estado a participar de uma convenção partidária em mais décadas. Historicamente, integrantes do governo não se envolvem em eventos partidários ou de campanha, como é o caso da convenção.
Pompeo estaria violando uma determinação de sua própria pasta, que em dezembro do ano passado impediu funcionários do Departamento de Estado de “falar a favor ou contra um candidato partidário, partido político ou grupo político partidário em convenções, comícios ou reuniões similares patrocinadas por tais entidades”.
Um comitê da Câmara, que é controlada pelos democratas, anunciou uma investigação da fala de Pompeo por supostamente descumprir uma lei que impede funcionários do governo federal de se envolver em atividades políticas no trabalho.
O discurso de Pompeo foi feito durante uma viagem oficial do ministro a Jerusalém. Um porta-voz do Departamento de Estado afirmou que ele manifestou seu apoio foi dado como cidadão e que nenhum recurso do órgão foi utilizado na preparação da fala.
O uso da Casa Branca como cenário para aparições de Trump e Melania também foi criticada pela oposição. Melania falou no Jardim Rosa, cenário onde Bill Clinton reuniu Yasser Arafat e Yitzhak Rabin para a assinatura de um acordo de paz, em 1993.
Usar a sede da Presidência para fazer campanha política é “um novo patamar” de conduta antiética por parte de Trump, disse à ABC News Kathleen Clark, professora de direito da Washington University.
Trump também usou a convenção para anunciar um perdão presidencial a Jon Ponder, que depois de cumprir seis anos de prisão por assalto a banco tornou-se um ativista da reintegração de ex-detentos na sociedade.
O perdão foi assinado na tarde de ontem, também na Casa Branca, e o vídeo da cerimônia foi exibido à noite. Momentos depois, outro clipe gravado previamente mostrou Trump participando de uma cerimônia de naturalização de cinco imigrantes. Segundo os críticos, foram mais dois exemplos de uso do símbolo maior do Estado americano para fins políticos.
Outra polêmica aconteceu nos bastidores e envolveu o apresentador Sean Hannitty, da Fox News. Na noite de segunda-feira, Hannity disse no ar que teria acesso exclusivo a pontos da Casa Branca onde ocorrerão discursos importantes, inclusive o de Trump, no fechamento da convenção.
Hannity é um dos maiores defensores de Trump dentro da Fox News e com frequência apresenta entrevistas exclusivas com o presidente. Representantes das redes abertas e das TVs pagas protestaram, já que todas estão exibindo as mesmas imagens – um sinal gerado pela produção do evento.
Derrota na audiência
E a audiência da primeira noite da convenção deve ter desapontado Trump, que não se cansa de usar essa medida como indicador de sucesso. O evento foi acompanhado por 17 milhões de pessoas pela TV, um número inferior ao da primeira noite do evento democrata, que contou com 19,7 milhões de telespectadores.
Mas os números da Nielsen se referem somente às TVs sintonizadas e não indicam a audiência total dos eventos. Ambas as convenções também estão sendo amplamente transmitidas pela internet, em serviços como YouTube, no site dos partidos e também em redes sociais como Facebook e Twitter.
A convenção republicana continua hoje, com discursos do vice-presidente Mike Pence e sua mulher, Karen.