RICARDO DELLA COLETTA
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)
O Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, publicou uma portaria que permite ao Itamaraty aumentar o uso do sigilo oficial e impedir a divulgação de documentos e informações sem a necessidade de um ato formal de classificação. Especialistas consultados pela reportagem afirmam que essa medida vai contra a Lei de Acesso à Informação (LAI).
A portaria assinada por Vieira também cria novas situações para restringir o acesso a conteúdos que não estão previstas na LAI, o que, segundo os especialistas, viola princípios de transparência na administração pública.
O Ministério das Relações Exteriores afirma que a norma visa suprir uma lacuna regulatória interna e está de acordo com a Constituição, a LAI e seu decreto regulamentador. A portaria nº 631 foi publicada em 5 de novembro no Diário Oficial da União e regula o tratamento de documentos e informações no Itamaraty.
Entre outras disposições, a portaria introduz a figura da “informação sigilosa não classificada”, que estará sujeita à restrição de acesso público mesmo sem um ato formal de classificação.
A portaria também permite que o MRE negue pedidos considerados “desarrazoados” com base na LAI, lei de 2011 que garante o direito de qualquer cidadão obter informações públicas. Essa expressão já consta da regulamentação da LAI, mas o Itamaraty definiu de forma ampla que são desarrazoados os pedidos cujo atendimento possa causar danos graves, tangíveis ou intangíveis, ao Estado ou à sociedade, contrariando os objetivos da transparência.
Especialistas apontam que essa redação vaga pode dar ao Itamaraty grande margem para bloquear pedidos com critérios subjetivos.
Outro ponto preocupante é que a portaria autoriza o ministério a adotar “salvaguardas” de acesso “independentemente de classificação” para casos específicos, como conteúdos protegidos por obrigações internacionais previstas em tratados e documentos preparatórios, incluindo telegramas, notas técnicas, pareceres e estudos usados em negociações.
Um diplomata ouvido anonimamente defende a portaria, explicando que o trabalho do Itamaraty envolve o manejo de informações sensíveis nem sempre protegidas adequadamente pelos prazos e regras da LAI. Ele cita, por exemplo, diplomatas no exterior que podem deixar de fazer avaliações verdadeiras sobre a situação política dos países por receio de que suas opiniões sejam divulgadas prematuramente, considerando o prazo de cinco anos previsto para documentos reservados.
Acadêmicos e pesquisadores da LAI discordam dessa visão.
Para Fabiano Angélico, professor da Universidade de Lugano (Suíça) e autor do livro “Lei de Acesso à Informação: Reforço ao Controle Democrático”, o problema principal da portaria é a criação da informação sigilosa sem necessidade de classificação.
Segundo a LAI, informações cruciais para a segurança nacional podem ser mantidas em sigilo, classificadas como ultrassecretas (25 anos), secretas (15 anos) ou reservadas (5 anos). A regulamentação da lei determina que cada classificação deve ter um termo que justifique o sigilo.
Angélico afirma que a portaria é contrária à LAI e deve ser revista rapidamente, dizendo que bastaria criar termos de classificação para cumprir a lei. “Não existe na LAI a figura de informação sigilosa sem termo de classificação”, explica.
Beatriz Kushnir, presidente da seção do Rio da Associação Nacional de História (ANPUH), destaca que os termos de classificação são essenciais para registrar as razões do sigilo e o prazo em que a informação ficará inacessível ao público.
Ela observa que a portaria cria áreas de difícil acesso para pesquisadores ao classificar pedidos de acesso como desarrazoados, sem exigir o registro das negativas ou definir quanto tempo o segredo deve durar.
Bruno Morassutti, cofundador da organização Fiquem Sabendo, avalia que a portaria de Vieira, da forma como foi escrita, não garante transparência pública. “O Itamaraty diz que precisa de sigilo para negociações internacionais, o que é parcialmente verdade. Mas o sigilo não pode ser eterno e precisa ser controlado”, afirma.
O Ministério das Relações Exteriores declarou que é um dos órgãos que mais produzem informações sigilosas devido à sensibilidade da atividade diplomática e nega que a portaria crie novas formas de sigilo. Segundo a pasta, a norma possui dispositivos para “prevenir o uso indiscriminado e assegurar o direito de acesso à informação” e busca evitar posturas excessivas ou defensivas de agentes públicos diante de lacunas jurídicas no ministério.
A Controladoria-Geral da União (CGU), responsável pela aplicação da LAI, informou que não foi consultada pelo Itamaraty antes da publicação da portaria e não comentou se o texto está de acordo com a lei.
