EUA pressionam Rússia a usar armas nucleares táticas na Ucrânia, para que Moscou perca sua credibilidade e tenha dificuldades para manter rede de aliados internacionais, acredita especialista em política nuclear.
Nesta quinta-feira (20), especialistas russos e norte-americanos se reuniram em Genebra, Suíça, para debater os riscos de conflito nuclear na Ucrânia.
Esta semana marca o 60º aniversário da Crise dos Mísseis em Cuba de 1962. Na época, mísseis norte-americanos instalados na Turquia e soviéticos instalados em Cuba deixaram a humanidade à beira de uma catástrofe nuclear.
“A escalada no conflito ucraniano, acompanhada de uma preocupante retórica nuclear, nos deixa mais próximos de uma catástrofe atômica do que qualquer momento desde a Crise dos Mísseis em Cuba”, disse o embaixador Thomas Greminger, diretor do Centro de Genebra para Política de Segurança.
O embaixador nota que “a catástrofe só foi evitada pelas duas potências, EUA e URSS, que evitaram o pior através de negociações e concessões”. Apesar das mudanças estruturais ocorridas na arena internacional desde a década de 1970, “a maioria dos arsenais nucleares e da responsabilidade sobre eles continua nas mãos de Rússia e EUA”.
O porta-aviões nuclear USS Ronald Reagan (CVN-76) da Marinha dos EUA chega ao Comando de Frota ROK em Busan, 390 quilômetros ao sul de Seul, em 23 de setembro de 2022
O diretor do think tank russo sobre política nuclear PIR Center, Vladimir Orlov, relatou que elites militares consideraram o uso limitado de armas nucleares não só durante crises globais, mas também durante guerras regionais, como a do Vietnã.
“Atualmente, vemos que alguns acreditam na ilusão de que as chamadas ‘guerras nucleares limitadas’ podem ser ganhas”, apontou Orlov. “Essa ilusão é perigosa, já que não existem vencedores em uma guerra nuclear.”
O consultor do PIR Center e diretor do Instituto de Assuntos Internacionais Contemporâneos da Academia Diplomática da Rússia, Vadim Koziulin, alertou que especialistas passaram a considerar o uso de armas nucleares táticas sem a mobilização total do arsenal disponível.
“Esse cenário é considerado por alguns analistas como possível e até aceitável no decorrer do conflito ucraniano”, declarou Koziulin à Sputnik Brasil.
Segundo ele, a Rússia não tem interesse em usar armas nucleares táticas na Ucrânia, uma vez que Moscou “perderia sua reputação” como garantidora do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e sucessor legal da URSS.
“Pode parecer vantajoso para os EUA pressionarem a Rússia a usar armas nucleares táticas na Ucrânia, para apresentar Moscou como um Estado-pária, e fazê-la perder seus parceiros e aliados”, considerou o analista.
O especialista acredita que há uma mudança generalizada “na relação psicológica com as armas nucleares”.
“Existem aqueles que não consideram armas nucleares substancialmente perigosas. Para alguns, elas podem até ter funções humanitárias”, declarou Koziulin. “O uso de armas nucleares táticas está começando a ser considerado como só mais uma solução operativa dentre várias outras.”
O especialista lamentou declarações de autoridades dos EUA, como o ex-vice-secretário de Defesa para assuntos políticos, James N. Miller, sobre a possibilidade de bombas de hidrogênio modernizadas B61-12 alegadamente diminuírem o número de vítimas civis em caso de uso.
“Se a Casa Branca continuar a armar Kiev com suas armas mais modernas, a Rússia pode chegar a uma situação de risco existencial, parecida com a dos EUA em 1962 […] quando o uso de armas nucleares pareciam ser uma necessidade vital para os militares norte-americanos”, disse Koziulin.
Falta de diálogo
O contexto atual, no entanto, é mais perigoso do que o da crise cubana, acredita a pesquisadora do Instituto Middlebury de Estudos Internacionais de Monterrey, Sarah Bidgood.
“Naquela época, pelo menos havia diálogo entre Washigton e Moscou sobre assuntos nucleares”, considerou Bidgood. “Agora, no caso ucraniano, as últimas negociações de peso entre EUA e Rússia na esfera nuclear ocorreram em 2010, há um tempo significativo.”
A falta de contatos informais entre EUA e Rússia durante um momento de crise “podem levar a más interpretações dramáticas”, alerta o diretor do think tank russo sobre política nuclear PIR Center, Vladimir Orlov.
“O interesse comum da Rússia, dos Estados Unidos e de todo o mundo é evitar a guerra nuclear. Durante o pior confronto entre os blocos soviético e ocidental, os líderes dos dois países puderam conversar porque entendiam a natureza incomparavelmente relevante da ameaça nuclear”, afirmou o pesquisador do Instituto Estatal de Relações Internacionais Moscou (MGIMO, na sigla em russo), Adlan Margoev, à Sputnik Brasil.
Segundo Margoev, se as lideranças mantêm diálogo limitado, cabe aos membros da academia e especialistas não governamentais assumirem as tratativas. A reunião de analistas de Rússia e EUA em Genebra “tem o intuito de garantir que canais de diálogo se mantenham abertos”, para diminuir a possibilidade de erro de cálculo que levem a uma catástrofe nuclear, garantiu o embaixador Greminger.
Exercícios nucleares da OTAN
Nesta segunda-feira (17), a OTAN iniciou os exercícios anuais nucleares nos territórios da Bélgica, Reino Unido e mar do Norte. Especialistas acreditam que a Rússia deve seguir o exemplo e treinar a sua tríade nuclear durante os exercícios militares Grom, que devem ocorrer no mar de Barents nas próximas semanas.
“Esses exercícios são anuais, e os especialistas insistem que eles não estão relacionados com os acontecimentos atuais. Mas é impossível ignorar que isso acontece durante a crise mais grave entre a OTAN e a Rússia desde a Guerra Fria”, considerou a conselheira sênior do Centro de Genebra para Política de Segurança, Christina Schori Lian.
A especialista nota que a retórica nuclear agressiva e o contexto sensível levaram organizações da sociedade civil contra armas nucleares a se manifestarem.
Um soldado nos exercícios táticos Three Swords 2021 (três espadas), realizados em conjunto pelas Forças Armadas da Ucrânia e países da OTAN no centro de treinamento de Yavorovsky na região de Lvov
Nesta quarta-feira (19), a Coalisão Belga contra Armas Nucleares realizou protesto em frente à sede da OTAN em Bruxelas para “expressar sua indignação” quanto à realização dos exercícios, que considerou “irresponsáveis”, em meio a “tensões nucleares severas com a Rússia”.
Em declaração à imprensa, a organização ainda nota que a realização deste tipo de atividade no território da Bélgica, um Estado não nuclear, “é uma violação flagrante do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares”.
Apesar do contexto tenso, em entrevista à CNN, no dia 12 de outubro, o presidente dos EUA, Joe Biden, disse duvidar que o presidente, Vladimir Putin, autorizaria o uso de armas nucleares táticas ucranianas, classificando seu homólogo como “um ator racional”.
Os comentários foram feitos após o ministro das Relações Exteriores da Rússia denunciar Kiev por advogar o uso de armas nucleares. Anteriormente, o presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, solicitou que a OTAN realizasse “ataques preventivos” contra a Rússia, durante declarações a especialistas australianos.
O presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, participa de uma entrevista coletiva após a Cúpula na da Plataforma da Crimeia
Koziulin alerta que este tipo de retórica, aliado ao uso extensivo de inteligência artificial, reduz o tempo necessário para tomar decisões críticas sobre o uso de armas nucleares.
“Talvez em um momento crítico, os líderes [Joe Biden e Vladimir Putin] não terão os 12 dias que Kennedy e Khrushchev tiveram durante a crise caribenha para chegar a um acordo”, concluiu Koziulin.
Entre os dias 19 e 20 de outubro, especialistas russos, europeus e norte-americanos debateram as lições da Crise dos Mísseis em Cuba e a possibilidade de uso de armas nucleares no teatro ucraniano de operações militares. O encontro foi organizado pelo think tank russo PIR Center, em parceria com o Centro de Genebra para Política de Segurança e o Centro James Martin para Estudos de Não Proliferação do Instituto Middlebury de Monterrey, EUA.