O mês de agosto começou com tumulto, tiros para o alto e formação de barricadas na fronteira entre o Estado sérvio e a república autoproclamada do Kosovo, na contenciosa região dos Bálcãs.
Os sérvios residentes no norte da região separatista do Kosovo se manifestavam contra uma nova lei, que impõe a substituição de placas de carros sérvias por kosovares e que a minoria sérvia utilize documentos kosovares ao cruzar a fronteira.
As medidas, que deveriam entrar em vigor no dia 1º de agosto, quase levou à eclosão de um conflito militar entre Belgrado e Pristina. A situação atingiu níveis alarmantes quando a missão da aliança militar do Atlântico Norte, OTAN, no Kosovo declarou sua prontidão para interferir, caso houvesse embates entre as partes.
O presidente sérvio, Aleksandar Vucic, por sua vez, pediu “aos albaneses que parem e aos sérvios que não sucumbam às provocações”.
“Vamos rezar pela paz e lutar pela paz, mas deixem-me dizer-lhes diretamente: se eles começarem a perseguir, assediar e matar sérvios, a Sérvia vencerá. Não importa quão difícil seja, não haverá rendição e a Sérvia vencerá”, disse o presidente sérvio em discurso à nação no dia 1º de agosto.
Histórico conflituoso
O conflito entre a Sérvia e o Kosovo é uma consequência da dissolução da Iugoslávia, Estado multiétnico que abarcava as duas repúblicas, além das atuais Croácia, Eslovênia, Macedônia do Norte, Bósnia e Herzegovina e Montenegro.
Ainda que a secessão da Iugoslávia, em muitos casos, tenha sido realizada de forma pacífica, a independência do Kosovo não foi aceita pela Sérvia.
“A guerra entre forças nacionais paramilitares do Kosovo e o Estado sérvio se desenrolou durante toda a década de 90, mas em 1999 vimos uma escalada e a intervenção da OTAN, liderada pelos EUA”, disse a pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUC-SP) e do Núcleo de Estudos Transnacionais para Violência (NETS-PUC-SP) Victória Perino à Sputnik Brasil.
Segundo Perino, ainda que exista um componente étnico nas diferenças entre o Kosovo, de maioria albanesa, e a Sérvia, esse não é o fator determinante do conflito.
“Não sou afeita à perspectiva de que essa guerra se resume a um conflito étnico. A retórica étnica foi mobilizada pelas lideranças e levou, inclusive, à morte de muitas pessoas”, disse Perino. “Mas o princípio da guerra é um conflito de independência do Kosovo em relação à Sérvia.”
Depois de intensos embates entre o Exército de Libertação de Kosovo e as forças sérvias e 78 dias de intensos bombardeios da OTAN contra o território sérvio e a sua capital, Belgrado, o Conselho de Segurança da ONU emitiu a resolução 1244, que reconhecia a integridade territorial sérvia.
Apesar da resolução reconhecer o Kosovo como parte da Sérvia, em 2008 o parlamento kosovar declara unilateralmente a sua independência, abrindo um preocupante precedente internacional.
“Essa declaração unilateral foi apoiada pelas potências ocidentais, em especial EUA e Alemanha, que quase imediatamente reconheceram a independência do Kosovo”, relatou Perino.
Reconhecimento do Kosovo
Atualmente, a comunidade internacional está literalmente dividida ao meio em relação ao reconhecimento do Kosovo: dos 193 países-membros da ONU, 97 países reconhecem o Kosovo e 96 não reconhecem.
Dentre a lista daqueles que consideram o processo de independência de Kosovo ilegítimo está a Rússia, Espanha, Grécia, China, Irã e o Brasil.
Na ocasião da declaração de independência do Kosovo, em 2008, o então chanceler Celso Amorim declarou que “a última resolução da ONU a respeito da situação do Kosovo defendia a integridade territorial do que veio ser a Sérvia”. Segundo Amorim, essa unidade territorial “fora desrespeitada com a declaração unilateral”.
“Se cada etnia, ou cada cultura, ou cada língua, ou mesmo cada dialeto criasse um Estado-nação próprio, isso seria a receita para a anarquia nas relações internacionais”, disse Amorim à época.
Logo, o Brasil não reconheceu a independência do Kosovo, por considerá-la uma violação da decisão 1244 de 1999 do Conselho de Segurança da ONU, que reconheceu o território kosovar como parte da Sérvia.
Apesar da batalha internacional pelo seu reconhecimento, autoridades de Kosovo adotam medidas para consolidar sua gestão do território, acelerando a emissão de documentos e taxação de cidadãos.
“Desde 2008, a nova República do Kosovo busca se consolidar de fato como um Estado, desenvolvendo um aparato e burocracia institucionais para legitimar a sua existência”, disse Perino.
Segundo ela, a cada vez que o Kosovo tenta expandir as suas atividades estatais, como no caso atual da emissão de placas de carros, o governo sérvio reage negativamente.
“O que aconteceu agora nesse episódio não é novo. Momentos de tensão como esses são muito comuns na região”, notou Perino.
Expansão da OTAN
As tensões do início de agosto foram agravadas pela conjuntura internacional, marcada pelo conflito ucraniano. Apesar das situações não terem vinculação direta, a expansão da OTAN é um fantasma que assombra os dois casos.
Segundo Perino, no início do conflito ucraniano as “autoridades de Pristina começaram a pressionar congressistas democratas nos EUA para acelerarem a entrada do Kosovo na OTAN”.
Desde 2007, o Kosovo está engajado no processo de entrada na aliança, que oficializaria o apoio militar que o país já recebe da organização.
“Uma das maiores bases da OTAN na Europa, chamada Camp Film City, fica na capital do Kosovo”, notou a especialista. “Para o Kosovo é importante mobilizar a narrativa sobre a entrada na OTAN, que enfatiza que eles são protegidos por uma grande potência militar.”
No entanto, um grande entrave à adesão de Pristina à OTAN é a posição de países-membros da aliança que não reconhecem o Kosovo, como a Espanha, Grécia e Eslováquia.
A Sérvia não possui uma relação conflituosa com a aliança ocidental, com a qual estabelece parcerias em diversas áreas. No entanto, Belgrado está de fato cercada por diversos Estados de pequeno porte sob controle direto ou indireto do aparato militar de Washington.
Influência dos EUA
Após liderar a intervenção da OTAN no conflito entre Kosovo e Sérvia, os EUA mantiveram presença física e influência política considerável no território.
“Os EUA, por conta da intervenção e do processo de paz que se sucedeu, conservaram uma posição muito importante em termos de liderança política, econômica e militar na região”, disse Perino.
Os laços de Pristina com o Partido Democrata dos EUA são ainda mais acentuados, revela a especialista.
“O Partido Democrata é o principal aliado da causa kosovar. Joe Biden advogou muito pela intervenção da OTAN nos anos 90”, declarou Perino. “Aliás, principal estrada nacional do Kosovo leva o nome do filho de Joe Biden.”
De fato, as autoridades de Pristina nomearam a principal estrada do país com o nome de Beau Biden, filho do atual presidente norte-americano que faleceu vítima de câncer no cérebro aos 46 anos, em 2005.
Os acontecimentos do início de agosto também contam com a influência dos EUA. Pouco antes do agravamento da situação, o presidente do Kosovo Vyosa Osmani e o primeiro-ministro Albin Kurti se reuniram com o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, em Washington.
A decisão das autoridades do Kosovo de apaziguar os ânimos e adiar a implementação da nova lei sobre as placas de carro também contou com participação ativa do embaixador norte-americano, Jeff Hovenier.
Tambores da guerra
O recuo do Kosovo foi aplaudido pela comunidade internacional, que temia um conflito militar nessa região tão complicada do globo. O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, por exemplo, congratulou a decisão de Pristina de adiar a aplicação das restrições de entrada.
Mas esse passo atrás não convenceu especialistas internacionais, que suspeitam de uma campanha deliberada para desestabilizar a ordem internacional no contexto do conflito ucraniano.
Para o professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina Fred Leite Siqueira Campos existe uma estratégia norte-americana para “criar focos locais de tensões políticas”.
Segundo ele, os EUA teriam interesse na criação de focos de tensão para aumentar seus gastos com armamentos, reafirmar seu papel de liderança na OTAN e envolver potências como Rússia e China em conflitos militares.
“Os atuais conflitos e/ou crises da Ucrânia, de Taiwan e dos Bálcãs são exemplos que, em minha opinião, têm todos ligações claras”, disse Campos à Sputnik Brasil.
Por outro lado, o professor de Relações Internacionais e coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Europeus da ESPM, dr. Demetrius Pereira, lembra que uma guerra pode não interessar nem à Sérvia nem ao Kosovo, uma vez que as suas candidaturas para aderir à União Europeia ficariam seriamente prejudicadas.
“Tanto o Kosovo quanto a Sérvia têm a intenção de aderir à União Europeia”, disse Pereira à Sputnik Brasil. “Isso coloca os países europeus como mediadores deste conflito.”
Apesar os incentivos contra, Pereira acredita que o conflito “pode piorar, sim”. Campos discorda, notando que a própria OTAN teria dificuldades de travar uma guerra nos Bálcãs.
“Na minha opinião, atualmente, uma guerra colateral na fronteira sul europeia seria tudo o que os EUA e a OTAN não precisam, dados os desafios logísticos de armar Kiev sem se envolver diretamente no conflito com Moscou”, declarou Campos.
Perino também considera a possibilidade de guerra “remota”, mas pediu atenção ao desenrolar dos acontecimentos no mês de agosto.
“É importante dizer que dentro de 30 dias a nova lei kosovar vai entrar em vigor. Em 1º de setembro abre uma nova possibilidade de escalada do conflito”, concluiu a especialista.
Em 31 de julho, sérvios residentes do norte do Kosovo realizaram protestos contra a implementação de nova lei sobre placas de carros e documentos de identidade na república autoproclamada. Após mobilização internacional, autoridades kosovares adiaram a implementação da medida para o dia 1º de setembro.