Administração de meia dose inicial foi erro, segundo farmacêutica; forma de administração da vacina gerou dúvidas entre analistas e na comunidade científica
Resultados preliminares divulgados nesta segunda-feira, 23, pela universidade britânica Oxford e pela farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca, apontaram que a vacina contra o novo coronavírus desenvolvida em parceria entre elas apresentou uma eficácia de até 90% quando administrada em meia dose na primeira aplicação, e com a dose completa na segunda, após um mês de diferença entre as injeções.
A forma de administração da vacina gerou dúvidas entre analistas e na comunidade científica, e a recomendação era simples: esperar um estudo revisado por pares ser publicado em uma revista científica. Fato é que o estudo ainda não veio, mas a confirmação de que a administração da meia dose foi um erro, sim.
À agência de notícias Reuters, Menelas Pangalos, executivo responsável pela área de pesquisa e desenvolvimento da AstraZeneca, confirmou que a administração de uma meia dose não foi intencional, e sim um erro no cálculo da dosagem. “Serendipidade”, definiu Pangalos — termo que indica quando boas descobertas são feitas “por acaso”.
Em entrevista ao jornal americano The New York Times, Pangalos afirmou que “o erro pode ser muito útil”. “Ninguém foi colocado em perigo. Foi um erro de dosagem. Todo mundo estava se movendo muito rápido. Corrigimos o erro e continuamos com o estudo, sem mudanças na pesquisa, e concordamos com os reguladores [Reino Unido, Estados Unidos e União Europeia] que incluiríamos esses pacientes na análise do estudo”, disse.
Pangalos ainda acredita que a dosagem administrada de forma incorreta é “totalmente irrelevante”, visto que a “eficácia ainda atende aos limites para a aprovação de uma vacina”, que os Estados Unidos definiram como 50%. O regime com duas doses completas administradas também com um mês de intervalo mostrou uma eficácia de 62%. O regime de meia dose deve ser testado nos Estados Unidos, com mais de 30 mil voluntários, segundo Pangalos.
O erro, que foi inofensivo, poderia ter tido consequências graves — e a vacina que antes era uma das mais confiáveis, agora também gera incertezas na comunidade científica.
A meia dose foi administrada apenas a voluntários com 55 anos ou menos, enquanto o grupo de dose completa também incluiu pacientes mais velhos, disse Moncef Slaoui, consultor científico chefe da iniciativa Operação Warp Speed do governo dos EUA, em teleconferência na terça-feira. Essa foi primeira revelação da falta de participantes mais velhos no grupo de meia dose. Também é possível que a diferença entre os grupos tenha sido um acaso estatístico e resultado do acaso, apontou o pesquisador.
Outras críticas à AstraZeneca se devem pela falta de revelação de dados importantes dos resultados do ensaio, como o número de infecções que ocorreram nos grupos de pacientes e discriminadas por idade e gravidade da doença – embora a empresa tenha dito que nenhum paciente que recebeu a vacina desenvolveu doença grave ou hospitalização necessária.
“A AstraZeneca forneceu muito poucas informações reais para avaliar de forma independente como estão os testes de vacinas”, disse Shane Crotty, pesquisador de vacinas e doenças infecciosas do Instituto La Jolla de Imunologia.
A vacina britânica está sendo testada em diversos países, entre eles o Brasil e o Reino Unido, com 10 mil pessoas sendo testadas em cada país. Vista como uma das mais promissoras pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ela é feita com base em adenovírus de chimpanzés (grupo de vírus que causam problemas respiratórios), e contém espículas do SARS-CoV-2 — um método mais conservador que o da vacina da Pfizer, por exemplo, que tem como base o RNA mensageiro do vírus.
Também existe um acordo entre o governo brasileiro e a AstraZeneca para a reserva de pelo menos 100,4 milhões de doses da vacina uma vez que ela for aprovada pelos órgãos regulatórios necessários.
Quem terá prioridade para tomar a vacina?
Nenhuma vacina contra a covid-19 foi aprovada ainda, mas os países estão correndo para entender melhor qual será a ordem de prioridade para a população uma vez que a proteção chegar ao mercado. Um grupo de especialistas nos Estados Unidos, por exemplo, divulgou em setembro uma lista de recomendações que podem dar uma luz a como deve acontecer a campanha de vacinação.
Segundo o relatório dos especialistas americanos (ainda em rascunho), na primeira fase deverão ser vacinados profissionais de alto risco na área da saúde, socorristas, depois pessoas de todas as idades com problemas prévios de saúde e condições que as coloquem em alto risco e idosos que morem em locais lotados.
Na segunda fase, a vacinação deve ocorrer em trabalhadores essenciais com alto risco de exposição à doença, professores e demais profissionais da área de educação, pessoas com doenças prévias de risco médio, adultos mais velhos não inclusos na primeira fase, pessoas em situação de rua que passam as noites em abrigos, indivíduos em prisões e profissionais que atuam nas áreas.
A terceira fase deve ter como foco jovens, crianças e trabalhadores essenciais que não foram incluídos nas duas primeiras. É somente na quarta e última fase que toda a população será vacinada.
Em entrevista ao MIT Technology Review, o epidemiologista Marc Lipsitch, de Harvard, afirmou que faz mais sentido vacinar os mais velhos primeiro, a fim de evitar mais mortes, e depois seguir em frente para outros grupos mais saudáveis ou para a população geral.
Um estudo realizado em setembro deste ano, por exemplo, fez um modelo de como a covid-19 poderia se espalhar em seis países — Estados Unidos, Índia, Espanha, Zimbábue, Brasil e Bélgica — concluiu que, se o objetivo é reduzir as taxas de mortalidade, adultos com mais de 60 anos devem ser priorizados na hora da vacinação.
Quão eficaz uma vacina precisa ser?
Segundo uma pesquisa publicada no jornal científico American Journal of Preventive Medicine uma vacina precisa ter 80% de eficácia para colocar um ponto final à pandemia. Para evitar que outras aconteçam, a prevenção precisa ser 70% eficaz.
Uma vacina com uma taxa de eficácia menor, de 60% a 80% pode, inclusive, reduzir a necessidade por outras medidas para evitar a transmissão do vírus, como o distanciamento social. Mas não é tão simples assim.
Isso porque a eficácia de uma vacina é diretamente proporcional à quantidade de pessoas que a tomam, ou seja, se 75% da população for vacinada, a proteção precisa ser 70% capaz de prevenir uma infecção para evitar futuras pandemias e 80% eficaz para acabar com o surto de uma doença.
As perspectivas mudam se apenas 60% das pessoas receberem a vacinação, e a eficácia precisa ser de 100% para conseguir acabar com uma pandemia que já estiver acontecendo — como a da covid-19.
Isso indica que a vida pode não voltar ao “normal” assim que, finalmente, uma vacina passar por todas as fases de testes clínicos e for aprovada e pode demorar até que 75% da população mundial esteja vacinada.