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‘Água privatizada’ e ‘ruptura com Pinochet’: referendo constituinte eleva tensão no Chile

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Em meio a uma crise hídrica, o Chile rediscute na constituinte o modelo que privatizou as águas no país durante a ditadura de Augusto Pinochet. A Sputnik Brasil conversou com especialistas sobre a desigualdade no acesso à água e sobre a proposta constituinte, que enfrenta um plebiscito no próximo domingo (4).

© AP Photo / Esteban Felix
Em 28 de julho de 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU) emitiu uma resolução declarando o acesso à água como um direito humano. Passados 12 anos, a manutenção da privatização das águas no Chile impede que parte da população tenha acesso pleno ao recurso. Em algumas regiões do país, como na província de Petorca, há concessões vitalícias a empresas sobre as águas locais para a produção agrícola, privando a população do recurso.
Segundo um estudo de 2020 publicado por pesquisadores chilenos da Universidad de Las Américas (UDLA), dos cerca de 29 mil proprietários de direitos sobre a água no Chile, 1% concentra 79% desse recurso. Para os pesquisadores, esse é um quadro de “desigualdade abismal”. Nesse cenário, mais de 1 milhão de chilenos não tem acesso a água potável.
Ainda segundo o estudo, as características especulativas do mercado de água no Chile “são perigosas para a subsistência no país”. Além disso, políticas públicas de “transformação estrutural da gestão da propriedade” são necessárias para sanar o problema, que afeta especialmente as comunidades rurais chilenas.
A engenheira Ximena Ugalde, dirigente socioambiental de Valparaíso, disse à Sputnik Brasil que hoje, no Chile, existem 400 mil famílias que são abastecidas por caminhões-cisterna, enquanto o setor produtivo segue acumulando esse bem da natureza de forma privada. Ugalde é natural de Melipilla, região onde camponeses sofrem para conseguir acesso a água.

“Algumas empresas acumulam a água em grandes piscinas através de bombeamento, e, dessa maneira, aqueles que têm acesso na primeira seção de um rio não permitem que a água chegue à seção quatro, onde se encontra a população, onde se concentra a vida”, explicou.

Segundo a engenheira ambiental, “as soluções institucionais têm sido mesquinhas e irresponsáveis, longe de gerar soluções sustentáveis ​​para garantir esse direito, tão mínimo e vital quanto a água”.

“É fácil encontrar essa paisagem no Chile: em direção ao morro você pode ver grandes piscinas de água e monoculturas verdes para exportação, ao lado de uma paisagem seca, marrom e desolada.”

Essa situação, porém, pode começar a mudar em breve, caso a nova Constituição do Chile, em discussão desde o ano passado, seja aprovada em referendo pelo povo chileno no domingo (4). Pela primeira vez desde 2012, os chilenos terão uma eleição com voto obrigatório, e o cenário é bastante incerto. O texto prevê mudanças na legislação herdada de Pinochet, incluindo a revisão das concessões vitalícias da água no Chile e o fim da privatização do recurso no país. A discussão ganha contornos dramáticos diante da seca que atinge o Chile, sob a qual o governo já admite a possibilidade de eventuais racionamentos.
“A nova Constituição garante o direito humano à água e sua proteção para as presentes e futuras gerações, além de entender como princípio a relação indissolúvel do ser humano com a natureza”, aponta Ugalde.
A ativista destaca que os elementos da natureza passam a ser vistos como “bens naturais comuns”, e não mais como “recursos”, o que os coloca em uma categoria de inapropriabilidade. Além disso, seria criada a Agência Nacional de Águas (ANA) para assegurar o uso sustentável da água e estabelecer autorizações de uso.

Privatização da água: herança neoliberal da ditadura de Pinochet

Conforme explica o cientista social Roberto Goulart Menezes, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (Unb), a água tornou-se mercadoria no Chile por conta da política de privatização radical e do Código de Águas implementados durante a ditadura de Augusto Pinochet, que vigorou entre 1973 e 1990 no Chile. Em entrevista à Sputnik Brasil, Menezes recorda que essa política não foi revogada ou revista após o restabelecimento da democracia no país.

“Como mercadoria, ela [a água] passou a ser vendida com a finalidade tão somente de obter lucro, e a necessidade social foi deixada de lado. Tanto que a água passou a disputar no orçamento das famílias mais pobres com outros itens de primeira necessidade como a comida”, afirma o pesquisador, acrescentando que não há uma situação semelhante no Brasil, onde propostas como essa não avançaram e a responsabilidade pela água é municipal.

O especialista em relações internacionais e estudioso do Chile aponta que reverter a privatização da água é uma das prioridades do atual governo, mas que isso disputa espaço com temas como aposentadoria, saúde e educação. O atual governo chileno promete tentar levar algumas mudanças adiante mesmo sem a aprovação da nova Constituição no referendo, mas para Menezes a pressão pela mudança em relação à gestão da água ainda é incerta.
“É preciso saber qual desses temas o governo Boric vai priorizar junto ao Congresso e o que pode acabar sendo adiado para um momento seguinte e nada mudar. Tudo dependerá de como e qual estratégia será adotada pelo governo Boric. Os movimentos sociais não aceitarão a volta da agenda política de antes dos protestos de 2019”, alerta o pesquisador.
O presidente do Chile, Gabriel Boric, recebe versão final da proposta de nova Constituição, em Santiago, em 4 de julho de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 01.09.2022
O presidente do Chile, Gabriel Boric, recebe versão final da proposta de nova Constituição, em Santiago, em 4 de julho de 2022

Aprovação de nova Constituição seria ‘ruptura com o neoliberalismo’

Para o professor da Unb, a recente chegada de Gabriel Boric ao poder no Chile é uma “etapa na luta contra o neoliberalismo” herdado da ditadura de Pinochet. Menezes lembra que o atual presidente chileno disputou o segundo turno das eleições com José Antonio Kast, um candidato de extrema-direita que “reivindica o ‘legado’ da ditadura pinochetista”.

“Assim, depois de quase 50 anos de neoliberalismo no Chile, não é uma questão política fácil de se resolver. Os chilenos ainda têm muita luta pela frente para virar a página do neoliberalismo. A constituinte é o passo mais importante nessa luta, pois ela recupera as noções de direitos sociais e de cidadania, busca a universalização da cidadania e prevê os direitos dos povos indígenas”, afirma o pesquisador.

Segundo o professor Menezes, a aprovação da nova Constituição chilena no referendo popular no domingo (4) simbolizaria uma “ruptura com o neoliberalismo” e com o passado pinochetista, servindo como um exemplo de superação das políticas de austeridade. “A esperança que emana do Chile é grande e potente”, diz.
Ugalde destaca que o período de construção da constituinte trouxe diversos elementos “dignos de observação de outros territórios do mundo”, com inovações em matéria ambiental, com paridade, incorporação dos direitos ao cuidado, mecanismos de participação popular, e também aponta que a aprovação representará um “novo começo” no Chile.
“[Significará] uma nova etapa, onde o movimento social deve pressionar pela implementação da nova Constituição e […] pelo cuidado e proteção de seu conteúdo, pois sabemos que, com as disposições transitórias, há um grande risco de ser modificado pelo atual Congresso, […] o que nos manterá alertas para não perdermos os elementos mais significativos e transcendentais para se alcançar uma vida digna, entre eles o direito humano à água e à natureza”, disse a ativista.

Derrota da constituinte pode reacender as ruas no Chile

Apesar da expectativa em torno da constituinte, a mais recente pesquisa publicada pelo instituto chileno Cadem aponta que o novo texto da Constituição pode ser derrotado no referendo popular. Segundo o levantamento, 46% dos entrevistados dizem rechaçar o novo texto, enquanto 38% dizem aprovar. Apesar disso, a porcentagem dos que dizem aprovar o texto apresenta tendência de alta em relação às pesquisas anteriores.
Menezes recorda que, diante da possibilidade de não aprovação do novo texto, o governo de Gabriel Boric — além da possibilidade de reiniciar o processo constituinte — se comprometeu a elaborar e negociar com o Congresso chileno mudanças na atual Constituição do país. O professor salienta que a Carta pinochetista de 1980 “aboliu os direitos sociais” e que o governo busca implementar algumas mudanças desde já, como a aprovação de um sistema único de saúde.
“Outras inovações da nova constituinte, como ensino gratuito em todos os níveis, também são uma demanda fundamental dos protestos. E o sistema de aposentadoria também. A nova constituinte foi orientada pela busca por justiça social e luta contra as desigualdades sociais. Uma derrota do sim no plebiscito deverá reacender os protestos nas ruas, e o governo Boric será colocado sob forte pressão popular”, conclui.
Soldado intercepta manifestante durante protestos no Chile, em 19 de outubro de 2019 - Sputnik Brasil, 1920, 01.09.2022
Soldado intercepta manifestante durante protestos no Chile, em 19 de outubro de 2019
Ugalde não vislumbra de forma alguma essa possibilidade. “Estamos firmes e convencidos da aprovação”, afirma a ativista, que acredita que as pesquisas não refletem a realidade das ruas e dos territórios.

“Para a comunidade organizada, para as famílias em suas casas, já não nos surpreende ou alarma o que as pesquisas podem dizer, pois sabemos da manipulação que está por trás disso. O povo é mobilizado pela realidade, e a realidade hoje nos mostra um grande triunfo da aprovação”, afirma.

“Quando saímos com o slogan de que o Chile acordou, era verdade. Acordamos e não voltaremos a dormir. Em todo o país, os atos de encerramento de campanha encheram os territórios, milhões de pessoas saíram às ruas para defender a nova Constituição de forma autogestionada e voluntária. Talvez em termos de números não consigamos uma grande vitória que nem foi a aprovação da constituinte, mas sem dúvidas vamos conseguir uma vitória pela aprovação, e será lindo”, finaliza.
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