FERNANDA MENA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
José (nome fictício) relatou que, aos 16 anos, cansado da vida difícil em uma favela do Rio de Janeiro controlada por um grupo criminoso, viu no tráfico de drogas uma saída, já que faltavam oportunidades de emprego e dinheiro.
Depois de quinze anos, ele disse à Folha de S.Paulo que muitos amigos de infância morreram no crime. Apesar de ser respeitado na comunidade, se sente preso nela, pois sair, até para ir à praia, pode significar prisão ou morte. Ele afirmou que, se não estivesse marcado pela polícia e tivesse um bom emprego, deixaria o tráfico.
Essa vontade de entrar e, ao mesmo tempo, sair do tráfico é comum entre os entrevistados na pesquisa Raio-X da Vida Real, realizada pelo Data Favela, que ouviu quase quatro mil pessoas envolvidas com o crime em favelas de 23 estados do Brasil.
O estudo revelou que seis em cada dez desses indivíduos deixariam a vida no crime se tivessem uma oportunidade legítima, como abrir um negócio próprio ou conseguir emprego formal.
A principal barreira apontada por metade deles é a falta de dinheiro. Ainda, 60% disseram que entraram para o crime por necessidade financeira, enquanto 17% buscavam status, roupas, eletrônicos ou emoção.
Mostrando um cenário difícil, 63% ganham até dois salários mínimos por mês, enquanto apenas 2% têm rendimentos superiores a R$ 15.200. Um terço complementa a renda no crime com trabalho legal ou vice-versa.
Marcus Vinicius Athayde, copresidente do Data Favela, destacou que a pesquisa quis revelar o lado humano desses indivíduos, incluindo trabalhadores que ajudam na contabilidade e preparo das drogas.
Fundado em 2013, o Data Favela é fruto de parceria entre a Cufa e o Instituto Locomotiva. Esta é a primeira pesquisa conduzida exclusivamente pela Cufa e Favela Holding.
Mesmo com ampla amostragem, a falta de dados sobre o número real de pessoas envolvidas no tráfico impede saber se a amostra é representativa.
Gabriel Feltran, sociólogo e pesquisador no CNRS e Sciences Po, na França, afirmou que a pesquisa é importante por trazer evidências sobre o tema, confirmando estudos qualitativos anteriores.
Depoimentos ressaltam que a vida desses traficantes inclui muitas restrições, como o medo constante de ser preso ou morto, o que os limita até em atividades comuns como ir a uma praia ou restaurante com a família.
Carolina Grillo, da Universidade Federal Fluminense, apontou que os dados ajudam a derrubar a imagem simplista do traficante como inimigo público, mostrando que muitos têm empregos formais e entram no crime por falta de opções.
Feltran comentou que a maior parte desses jovens operam numa função que não oferece ascensão social, semelhante ao trabalho formal.
Camila Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC e coautora do livro “A Guerra: Ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, observou que o perfil desses jovens envolvem maioria do sexo masculino, negros e com baixa escolaridade, correspondendo também aos grupos mais afetados pela violência e encarceramento.
Ela destacou a grande desigualdade dentro do crime, onde o foco bilionário esconde que os jovens nas favelas ganham pouco e estão em maior risco.
Feltran lembrou que quem lucra muito com o tráfico não está nas favelas, mas sim adolescentes vulneráveis que buscam no crime poder, respeito e outros símbolos.
Emerson Ferreira, psicólogo e ex-traficante, compartilhou sua experiência: começou no tráfico como freelancer para ganhar dinheiro extra e hoje trabalha com reinserção social de ex-detentos.
Para ele, o crime é consequência da pobreza e a dignidade deve ser o foco das políticas públicas de segurança.
A pesquisa também revelou que 54% dos entrevistados já foram presos ao menos uma vez, e 57% têm familiares presos ou ex-detentos.
Athayde reforça que emprego e educação são essenciais para o caminho fora do crime, já que 44% dos entrevistados afirmaram que teriam estudado mais se pudessem mudar suas vidas.

