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sábado, 01/11/2025




1,3 milhão de crianças brasileiras ficaram sem pais ou cuidadores durante a pandemia

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CLÁUDIA COLLUCCI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Aos sete anos, Gael sente falta da mãe Almiza, que faleceu aos 37 anos devido à Covid-19 em junho de 2020, e sempre pede colo ao pai. Sua irmã mais nova, Valentina, de cinco anos, nasceu pouco antes da perda e frequentemente chama pela mãe.

“Ela chora dizendo: ‘Papai, quero minha mamãe’. Os cinco filhos ainda sentem muito a ausência dela. Tentei terapia para o mais velho, que hoje tem 16 anos, mas não tive sucesso. Falta apoio emocional por parte do governo. Só podemos contar com nós mesmos”, relata o enfermeiro Gracione da Silva Santos, 44 anos.

O relato da família reflete um estudo divulgado na revista científica The Lancet Regional Health – Americas, que estima que 1,3 milhão de crianças e adolescentes até 17 anos perderam um pai, uma mãe ou outro cuidador durante a maior fase da pandemia de Covid, entre 2020 e 2021.

Dessas crianças, 673 mil ficaram órfãs de um ou ambos os pais, sendo que 149 mil dessas mortes estão diretamente ligadas à Covid. Além disso, 635 mil perderam avós ou outros parentes que moravam na mesma casa — pessoas que muitas vezes eram o principal suporte financeiro e emocional. Entre esses, 135 mil perdas foram causadas pela Covid.

“Perder um pai, uma mãe ou um cuidador na infância causa feridas profundas que duram muito tempo. No Brasil, essas crianças continuam invisíveis para o governo”, afirma a professora da USP e coautora do estudo, Lorena Barberia. Para ela, entender a dimensão dessa tragédia é o primeiro passo para que o país se responsabilize por cuidar dessas crianças.

O estudo mostra que os impactos da orfandade não foram iguais em todo o país. Roraima, estado onde vive Gracione Santos, tem a maior taxa de crianças órfãs por todas as causas — 17,5 a cada mil crianças —, enquanto Santa Catarina tem a menor taxa, 9,5 por mil.

Considerando só as mortes por Covid, Mato Grosso tem a maior taxa (4,4 por mil), e o Pará, a menor (1,4 por mil). Para os pesquisadores, essas diferenças refletem desigualdades: onde o acesso à saúde é pior e a pobreza maior, as perdas são mais severas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a orfandade uma experiência traumática na infância, que aumenta os riscos de depressão, suicídio, problemas mentais e exclusão social no futuro.

“Essas perdas vão além do luto. Elas prejudicam a vida escolar, o bem-estar emocional e a estabilidade financeira das famílias. São feridas que se acumulam com o tempo”, comenta Barberia.

A psicóloga Samantha Mucci, professora da Unifesp e coordenadora do Proalu, programa de apoio ao luto infantil, explica que a perda dos cuidadores principais desorganiza o mundo emocional da criança. “Ela perde não apenas quem cuida, mas também a sensação de segurança, identidade e pertencimento.”

Sem apoio adequado, a criança pode desenvolver ansiedade, depressão, culpa, problemas na escola, agressividade, isolamento e regressão em comportamentos, como enurese noturna, medo de ficar sozinha e fala imatura. Em casos graves, pode haver luto prolongado e risco de suicídio.

“Apoio psicológico e uma rede de suporte são essenciais, assim como manter rotinas e oferecer espaços para escuta e reconstrução dos vínculos”, diz a psicóloga.

O Brasil é o único país que registra nas certidões de óbito se a pessoa falecida tinha dependentes menores pelo CPF. Essa informação poderia ajudar a identificar rapidamente crianças órfãs e a conectá-las a programas de apoio se usada em políticas públicas.

“Temos uma ferramenta valiosa, mas o governo ainda não a utiliza para agir”, observa Barberia.

O estudo, liderado por pesquisadores nacionais e internacionais, analisou dados de mortalidade, censos, pesquisas domiciliares e estimativas de mortes para calcular a orfandade total.

Os autores confirmaram que as fontes oficiais subestimam o número real de órfãos, conforme verificado em uma iniciativa piloto em Campinas (SP), liderada pela promotora Andrea Santos Souza, também coautora do estudo, que revisou certidões para identificar órfãos da Covid e conectá-los a benefícios sociais.

“Mesmo quando há dados, falta integração e vontade política para agir”, lamenta Barberia.

Para a pesquisadora, cada órfão representa uma vida transformada para sempre. “O mínimo que podemos fazer é reconhecer, cuidar e garantir a essas crianças oportunidades reais de recomeçar.”

A pandemia evidenciou as desigualdades: nos estados mais pobres, onde morreram mais adultos e as redes de apoio são frágeis, o impacto sobre as crianças foi maior.

“A distribuição da orfandade reflete a desigualdade social. Cada ponto do mapa revela como a pobreza e a falta de proteção social causam perdas irreparáveis”, ressalta a autora.

Os pesquisadores defendem o fortalecimento dos sistemas de registro civil e de estatísticas para que o país possa responder rapidamente em futuras crises sanitárias. “Sem dados confiáveis, não há como planejar políticas eficazes nem garantir proteção às crianças”, ressalta Barberia.

O estudo recomenda a criação de programas nacionais de apoio psicológico, escolar e financeiro para crianças enlutadas e cuidadores sobreviventes. Experiências no exterior mostram que combinar transferência de renda com apoio parental reduz o impacto da perda e melhora o desenvolvimento emocional das crianças.

No Brasil, ações pontuais surgiram durante a pandemia, mas não viraram política de Estado.

“O país ainda vê o luto como algo privado, quando na verdade é um problema público e coletivo”, afirma Barberia.

Os pesquisadores alertam que, além da Covid, mortes por violência, acidentes, desastres naturais e doenças crônicas também geram órfãos todos os dias, muitas vezes em situações de vulnerabilidade.

“Vivemos uma série de crises que afetam as famílias continuamente. Proteger as crianças deve ser prioridade na preparação para qualquer emergência”, conclui a pesquisadora.




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